Literatura

O Jagunço Sintético e o Pensamento nos Limites da Experiência

Imagem:

Carybé – Vaqueiros na Caatinga (1969)

Óleo sobre tela

47 x 60 cm

Renan Porto retorna à R.Nott Magazine para nos conduzir através do impossível labirinto roseano do Grande Sertão. Investigue conosco a incerteza dessa metamorfose jagunça.


 

“O romance de Rosa é a história desse movimento de desterritorialização de um sujeito, Riobaldo, e sua conexão com diferentes forças que o impelem ao movimento: a guerra, a paixão homossexual, o pacto diabólico, etc.”

 

 

          Riobaldo está sempre à espreita de um acontecimento: seu pacto com o diabo pode estar prestes a acontecer. Meia-noite na encruzilhada, uma porca arrastando meia dúzia de pintos, a brisa contorcendo o negror do tempo. Há uma espera, uma atenção e nada acontece. Não se ouviu mais do que o barulho das folhas de bananeira ao vento e o granir dos próprios dentes. Ele começa a gritar chamando o nome da besta… Nada. Nada mais que a solidão profunda do frio dentro e fora da carne do jagunço. Ele confirma que o cujo não existe, mas ainda assim acredita que foi ouvido por ele, sente tranquilidade por isso como algo inapreensível. “As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite” (Rosa, p. 422).

 

          Mas algo se passou. Riobaldo se transforma, entra num devir demoníaco. Adquire outra relação com o sertão, seu corpo passa a ter expressões que ele até então desconhecia, assume a liderança do bando e ganha uma nova disposição para a guerra contra os hermógenes. “Tudo agora reluzia com clareza, ocupando minhas ideias, e de tantas coisas passadas diversas eu inventava lembrança, de fatos esquecidos em muito remoto, neles eu topava outra razão; sem nem que fosse por minha própria vontade” (Ibidem, p. 424). Riobaldo parece ser atravessado por algo que o arrasta numa relação diferente com tudo que lhe envolve. Algo inumano e incorpóreo corroeu as bordas orgânicas da sua estrutura humana. O seu corpo de jagunço catalisa as forças silenciosas do sertão. Antes do pacto é sempre marcante a relação de estranheza com todo o ambiente sórdido do mundo jagunço. Riobaldo seguia lidando com uma enxurrada de dúvidas, carregado de ambiguidades, seja quanto à existência do diabo, seu amor por Diadorim, sua participação no bando de jagunços, a necessidade de matar para sobreviver às guerras entre os bandos, etc. Mas agora era ele quem ria outras risadas. Seu corpo perdeu o peso da culpa para se mover com mais leveza e agilidade na guerra. Mais do que um aumento de grau na velocidade do movimento, é o tipo de relação e o modo de se mover que passa a ser outro. A citação anterior destaca uma alteração marcante da memória do personagem. Seu passado já não é mais o mesmo, sendo reeditado numa outra constelação de imagens, com outra lógica de encadeamento entre elas, produzindo novas atribuições de sentido à sua realidade. Esta transformação da memória muda totalmente a perspectiva do futuro e a relação com o presente. O devir, que é a abertura do ser para a variação no tempo, embaralha a percepção dos eventos em outra lógica. A temporalidade do devir não é da mesma natureza da cronologia e do sistema de causalidade mecânica entre os eventos. No devir é possível sentir o calor da lembrança mais distante e o que determina o presente não pode ser medido pela probabilidade.

 

          No entanto, em momento nenhum o diabo se presentifica e se faz atual no Grande Sertão. Como poderíamos definir aquilo que nunca se faz atual e presentificado em matéria, mas está a todo momento aparecendo como efeito de sentido exprimido na superfície dos corpos? A cada experiência em que o absurdo da existência arrombava os limites de expectativas do que podia o real, a vida chacoalhava as crenças de Riobaldo. O que parecia tão estranho ao que era humano ou natural se traduzia como obra maligna. Tinha sempre algo que se passava nos contornos dos corpos, um vulto que se expressava no movimento.

 

          Mas, onde estaria o demo? Ora, como poderíamos definir aquilo que é puro movimento, que está sempre a escapar, que se dá a saber apenas seus rastros? Precisamos reformular essa questão tão impregnada por um desejo de totalização logocêntrica. Melhor seria nos esforçamos em outro empreendimento: experimentar se aproximar desse campo de forças em vibração, ser arrastado por ele, perceber o correr de suas águas, a velocidade dos seus ventos, se deixar ser tocado, trazer de volta suas marcas num corpo que já não pode ser mais o mesmo. O Grande Sertão nos convida a também travarmos um pacto diabólico com a leitura. Deixá-la nos atravessar de modo que transforme a linguagem que usamos, o modo como narramos, fazendo proliferar na nossa escrita mais possibilidades de linguagem.

 

          Por isso estamos tomando o Grande Sertão: veredas como experiência e não como objeto, pois encontramos aí uma realidade que a literatura produz. Ou podemos dizer que produz uma zona em que esta outra realidade toca aquela em que depositamos a crença de conhecê-la enquanto real de fato porque vista, porque presente, porque matéria. O realismo literário produz um duplo do real. Sendo a relação com a literatura uma experiência com a linguagem, com as imagens que a narrativa produz, com os sons das palavras e todo o universo em que imergimos na leitura, podemos extrair daí dados desta experiência e alguma forma de conhecer. Considerando que o processo de conhecimento se faz pouco a pouco, por meio de junções sucessivas, percorrendo relações entre diferentes dados e correlacionando-os em séries. As diferentes formas de narrativas literárias nos propiciam esta experiência com diversas formas de articular um sistema de causalidade e organizar os eventos no tempo.

 

          Desta forma, o conhecimento vai sendo formado à medida que a memória vai amarrando uns aos outros os instantes captados na experiência. E o romance de Rosa nos leva ao encontro desse modo de constituição do conhecimento quando vamos acompanhando os jagunços nas suas viagens pelo sertão. É percorrendo os espaços, explorando trilhas, às vezes chegando a nenhures, tendo que voltar, tomar outros rumos, etc, que a geografia sertaneja vai se formando para os personagens. Os sujeitos vão chegando pouco a pouco aos objetos e sendo transformados nesta experiência. Nem sujeito nem objeto são os mesmos que antes da experiência. E é assim também que a literatura nos coloca numa experiência de construção de mundos que ela trata e a depender de como nos expomos a este processo é possível termos nossas percepções e linguagem transformadas, modificando nossa relação com a realidade.

 

          Por outro lado, a literatura tem a capacidade de nos fazer passar do nível empírico da experiência para um nível transcendental em que o pensamento é invadido por ideias que podem ser apenas pensadas e não experimentadas fisicamente. É uma outra metade da vida que pelo seu nível de abstração apenas podemos intuir e que em nada se opõe ao processo deambulatório e ruminativo da experiência. É como se a ficção liberasse fantasmas que assombrassem os dados empíricos remetendo o pensamento para alhures. Uma boa leitura sempre nos compele a uma intensificação de sinapses, mas a ficção instila no pensamento um fascínio pelo que está nos limites do que pode ser conhecido empiricamente.

 

          Talvez a literatura, na medida que consegue narrar outras modalidades do real, seja capaz de antecipar e expressar a virtualidade do que a ciência posteriormente possa tornar atual e especificado. O pensamento literário busca dar forma a outros níveis da realidade que ainda não se possuem signos para expressá-lo. A criação literária é um processo em que o pensamento dobra o caos em cosmos. Este caos informe mais parece um novelo de dimensões desmedidas em que nunca se sabe onde começa um fio e até onde ele vai. A escrita literária é uma modalidade estranha do tricô e o objeto final pode sempre se desmanchar e se reembaraçar num emaranhado de novelos e fios soltos. Da mesma forma, Guimarães Rosa compôs uma imensa colcha com bordas indeterminadas. Uma colcha que aponta para a virtualidade de dimensões sempre maiores do que o plano já composto. Em sua obra o sertão pulsa as dimensões desmedidas do cosmo, indo do mais regional para chocar-se contra os limites do entendimento abstrato.

 

          Willi Bolle, em seu livro grandesertão.br, percebe o Grande Sertão composto de forma labiríntica: um labirinto narrado no labirinto da narração (Bolle, p. 82); as memórias de Riobaldo – suas dúvidas, hesitações, incertezas, “sei que estou contando errado” (Rosa, p. 98) – que são memórias de suas errâncias pelos labirintos de veredas do sertão. Comparando com Euclides da Cunha, Bolle diz que enquanto este escrevia sobre o sertão, Rosa escrevia como o sertão, tornando o romance uma “forma de pensamento”. Riobaldo vai narrando suas estórias de modo fragmentário e não linear, criando uma rede à medida que vai lembrando dos momentos e amarrando eles uns nos outros. Não à toa que Bolle sugere o título experimental: “Grande Sertão: Network”. Afinal, o sertão roseano não é apenas um espaço geográfico, empírico ou alegórico, mas sobretudo o mapa de uma mente, um espaço virtual: a memória de Riobaldo (Bolle, p. 87).

 

          O livro de Willi Bolle oferece uma generosa contribuição a quem se mete a se perder pelas tramas do Grande Sertão: veredas. Bolle consegue reunir e traçar uma coleção de cartografias que nos permite situar alguns pontos deste outro sertão virtual composto por Guimarães Rosa. E como quem já passou por ali, avisando que ali sempre pode ser outro lugar, Bolle compartilha suas experiências e nos avisa sobre alguns personagens, suas características e artimanhas.

 

          No universo sertanejo apresentado por Bolle, a jagunçagem – mais do que um ofício sórdido e sujo – aparece como um sistema retórico, cheio de efeitos de sentido e dissimulações. As imagens de líderes jagunços e suas façanhas são construídas por diferentes discursos indiretos ou feitos por eles mesmos sobre si. Medeiro Vaz, mítico, o mais bruto, o mais sério, grande homem de poucas palavras que não morre de qualquer topada, mais que um pé de sapucaia para derrubar; Joca Ramiro, grande homem príncipe e suas pretensões de trazer ordem ao sertão; Zé Bebelo, faceiro e cheio de mil projetos, uma figura dúbia, que ia deixando transparecer seus pés de barro, suas ambiguidades, interesseiro na política e tendencioso a pelego. No confronto com os Hermógenes na Fazenda Tucano, Riobaldo ao lado de Zé Bebelo e seu bando, encurralados dentro da casa, a bala comendo e Zé Bebelo todo se afrouxando, pede logo para chamar o exército, mas não quer assinar o ofício.

 

          Riobaldo ouve histórias sobre esses líderes, convive com Zé Bebelo, foi seu professor na iniciação nas letras, mas quando se envolve com a jagunçacem vai vendo como a coisa acontece e percebendo imagens que contrastam aquelas que sua memória colecionou até então. Vê que muitas dessas figuras eram fazendeiros, homens de posses e riquezas, que reuniam em torno de si bandos enormes de jagunço, fazendo guerra para obter mais lucros, ajuntando por ajuntar. É o caso do Ricardão, que era também parceiro do monstruoso Hermógenes.

 

          Riobaldo desconfia desses líderes. Alguma coisa não o convence. Já vê mais distante, mas ainda tão confuso, chocado com toda violência que viu, confrontado pela contradição que exige mais que um quase para ser encarada de frente. Willi Bolle, que vai deixando pistas em seu texto, lembra uma distinção interessante entre o que define um jagunço e o que é o fazendeiro, feita pelo próprio narrador Riobaldo Tatarana, agora, Urutu Branco: jagunço, homem provisório, encruzilhada de mil trilhas que nunca se desamarra, carregando em si o sertão e sua variação. “O jagunço é o sertão”, e tal como este vai se transformando e se abrindo em veredas a cada milha. Ele é o que lhe demanda a experiência. O jagunço vai tateando o sertão e lendo seus sinais, consegue ver o invisível e a presença do inaparente. Ele pensa por tendências. O fazendeiro, por outro lado, é um sujeito estático, sujeito definitivo, que se define pela sua propriedade, a determinação de um lugar e um território. Quer conquistar o sertão inteiro para não ter que se desfazer de si onde quer que vá, sem porquê de atravessar o Liso do Sussuarão se do outro lado já não poderia ser mais o mesmo. É uma subjetividade que não se abre para a experimentação.

 

          Mas o próprio Riobaldo também é atravessado por tendências de ser fazendeiro ao mesmo tempo que é arrastado pelas tendências de devir jagunço. As coisas estão sempre se compenetrando no Grande Sertão: veredas. Mas ao final de sua vida, longe de tantos riscos da viagem no incerto, casado com Otacília, Riobaldo se torna um fazendeiro. Cansado da intensidade da experiência de ter sua subjetividade sempre desfeita pela velocidade dos eventos e dos encontros e confrontos com as matérias vertiginosas do sertão que assombra e faz delirar a razão. Um pouco de definição para aliviar a incerteza da ambiguidade do que é provisório. A ilusão de estar seguro no que é permanente num lugar fora do tempo. Ou seja, nonada.

 

          O romance de Rosa é a história desse movimento de desterritorialização de um sujeito, Riobaldo, e sua conexão com diferentes forças que o impelem ao movimento: a guerra, a paixão homossexual, o pacto diabólico, etc. Uma subjetividade que se inscreve em diferentes conexões com outras forças que o corpo sintetiza e faz vibrar, transformando a subjetividade pela sintetização das intensidades de afecções que se dão com outros corpos e a geografia sertaneja. Depois o redemoinho se esvai, as coisas se reassentam, a poeira baixa, e Riobaldo se torna fazendeiro. O romance nos oferece uma experiência de iniciação virtual na jagunçagem junto com Riobaldo e expressa esse processo de uma linha de fuga, um tempo intensivo, que depois se dissipa. É uma corrente elétrica que corre uma superfície e depois desaparece.

 

          Na comparação crítica que Bolle faz entre Rosa e Euclides da Cunha, expondo as diferenças entre os autores, ele diz que n’Os Sertões a batalha de Canudos aparece como luta entre duas concepções de organizar o território brasileiro: a racional e a labiríntica (Bolle, 2004, p. 76). Na perspectiva euclidiana ele identifica uma visão do alto, um sobrevoo de um espírito de geômetra planejador e controlador, como um comandante de exército do alto da colina; espírito precursor de planejamentos estratégicos como o plano piloto de Brasília ou a Transamazônica. À esta cartografia derivada do racionalismo instrumental que instaura o homem como dominador da natureza, opõe-se o olhar de Rosa, que é uma perspectiva rasteira, partindo de dentro e atravessando o sertão como um rio. Bolle faz um trocadilho quase irresistível: Riobaldo.

 

          Com isto podemos pensar como a obra de Rosa propõe uma forma de relação entre sujeito e mundo em que este segundo termo da relação não é uma matéria passiva à espera de ser esquadrinhada pelo primeiro termo. Portanto, mais interessante é colocar a relação se dando entre corpo e espaço, pois no processo de travessia e viagem do sertão roseano, a subjetividade jagunça não é algo já dado e bem formado numa consciência, mas maleável às demandas da situação. O jagunço está sempre a perceber a variação dos signos do espaço conforme o percorre e seu modo de se conectar ao ambiente não é fixo, mas processual. Os jagunços mais se distribuem pelo sertão num processo adaptativo do que organizam o espaço em localidades fixas e fronteiras determinadas, como os fazendeiros.

 

          Foi Silviano Santiago no seu livro Genealogia da Ferocidade, dedicado ao romance de Rosa, que percebeu na corrente do rio, a pujança de enxurrada responsável por desbravar veredas entre margens opostas, e nas filas de buritizais paralelas às margens do rio São Francisco, “o significado do perfeito e justo acomodamento das margens verdes e eretas, lado a lado da corrente d’água” (Santiago, p. 42). Como na fala de Riobaldo que ele cita: “[…] O senhor estude: o buriti é das margens, ele cai seus cocos na vereda – as águas levam – em beiras, o coquinho as águas mesmas replantam; daí o buritizal, de um lado e do outro se alinhando, acompanhando, que nem que por um cálculo” (Rosa, p. 377). A harmonia entre terra/rio/terra produzindo sua própria justiça, digo, se ajustando entre si imanentemente.

 

          Uma das características mais interessantes do pensamento de Guimarães Rosa é a capacidade de desenvolver esses traços que perpassam duas margens sem se adequar a alguma delas, mas que segue continuamente avançando e demandando a necessidade de serem pensados na sua multiplicidade. Personagens ambíguos são muito presentes nas histórias criadas por Rosa. Por exemplo, no conto A Terceira Margem do Rio, em que o pai solitário embarca na canoa e vai para o meio do rio, cortando a corrente da água, constituindo ali um terceiro lugar, uma terceira margem, como um banco de areia. O que é mais interessante observar é que estes paradoxos criados por Rosa não se resolvem, mas são maximizados por uma posição indecidível, como bem pontuou Silviano Santiago. No caso de Riobaldo, ele não resolve suas contradições, não decide se é isto ou aquilo, mas segue adiante misturando as oposições que lhe intrigavam. Seguindo o ensaio crítico de Santiago, podemos ler o Grande Sertão: veredas a partir desse jogo de paradoxos que se mantêm na indecisão. “O paradoxo torna ambíguo tudo o que nos é dado pela clareza decisória, ou seja, pela clareza irascível que depreende da caracterização de mão única dos personagens” (Santiago, p. 43). Manter esta tensão nos impedirá de cair numa interpretação unívoca de um texto monstruoso que abre as entranhas das palavras para a multiplicidade polissêmica.

 

          O conceito de irascibilidade, usado por Santiago, não se refere a uma propriedade psicológica dos indivíduos baseada na ira, mas à “imposição do gregário no sertão por um gesto de homem que é superior aos demais. A irascibilidade é gesto disciplinar, é fala autoritária. A ira é o motor da disciplina e da autoridade no Alto São Francisco. A violência de um (ou de alguns) alimenta quase sem direção o sentimento da comunhão planejada, metamorfoseando a anarquia selvagem do bando em comunidade sertaneja, cujos membros passam a entrar por uma quase porteira, engrossando – amontoando – um quase rumo político” (Ibidem, p. 45).

 

          Santiago dá como exemplo de irascibilidade no próprio Grande Sertão a ação dos agentes do governo federal ou das tropas militares a serviço da ordem republicana, enviados ao sertão para combater os bandos de jagunços. Mas também personagens como Joca Ramiro e Zé Bebelo, que desejavam civilizar o sertão (Ibidem, p. 46-47). A irascibilidade é justamente a imposição de uma ordem transcendente e exterior às formas de relações que os bandos tomavam vivendo em grupos nômades pelo sertão. Mas Santiago também usa o conceito para se referir à domesticação que a crítica literária impôs ao romance roseano, sobrecodificando-o com grandes significantes que tentavam açambarcá-lo numa interpretação fechada, como mitos de origem social e nacional ou a redução do romance a uma releitura de Os Sertões de Euclides da Cunha. A operação que Santiago desenvolve no seu ensaio é a de liberar a ferocidade do romance desconstruindo as interpretações totalizantes e abrindo-o para sua pluralidade semântica irredutível.

 

          No mesmo capítulo em que discute sobre a irascibilidade, Santiago colocou uma nota de rodapé explicando uma palavra criada por Rosa no Grande Sertão: “suscenso”. Palavra usada num contexto em que Riobaldo fala de um homem urucuiano que estava ajoelhado com uma perna muito para trás e a outra muito para diante (Rosa, p. 346). Partindo disso, Santiago percebe uma tensão entre suspense (incerteza, hesitação, ansiedade) e sucesso (triunfo, bom êxito). Suscenso seria essa tensão entre suspense e sucesso, hesitação e triunfo, como uma flecha que quanto mais se tensiona o arco mais longe pode ir. E isto parece ter proximidade com a história de Riobaldo que mantém uma tensão constante de incertezas e hesitações até o momento que salta num jorro afirmativo de desejo guerreiro.

 

          Com isso, podemos pensar a potência política que a ambiguidade pode ter. Quando um elemento ambíguo entra em cena carrega consigo potências imprevisíveis. Não se sabe exatamente o que está por vir. A partir do momento que se é fixado uma identidade para tal elemento, é possível inseri-lo numa certa linhagem de referências a partir das quais se pode prever mais facilmente suas tendências. Ora, produzir ou encontrar essa ambiguidade e mantê-la seria uma forma de escapar às estratificações operadas por um pensamento acostumado à racionalidade do Estado, do Uno, da Identidade?

 

          Podemos percorrer o Grande Sertão analisando as experiências do personagem Riobaldo e perceber os processos de transformação subjetiva e diferenciação da realidade a partir da experiência jagunça. A escrita roseana consegue expressar estes movimentos em sua imanência sem encerrá-los em formas fechadas, mas mantendo seu trânsito entre oposições indecidíveis. Com isso podemos extrair da leitura do texto de Rosa algumas implicações políticas para se problematizar a violência da autoridade que impõe suas ordens e as formas singulares que complicam este sistema de ordenação e fazem escapar novas linhas de composição da vida. É possível então liberar a justiça dos axiomas de bem e mal que condicionam uma forma transcendente de pensar a ética passando a uma concepção de justiça enquanto processo de ajustamento entre os corpos e seus lugares, processo que demanda um movimento constante de atualização e transformação da comunidade. Processo orientado por uma busca de equilíbrio no conjunto de relações conflitivas e instáveis que produzem um corpo social.

 

          Concordando com a crítica literária que diz que o Grande Sertão traça uma imagem do Brasil, nos interessa questionar como ele opera isto subtraindo o pensamento ao modelo de Estado, desterritorializando a ideia de nação num “espaço anárquico de uma população depauperada e crescente, que escapava ao controle e era o oposto dos ideais da ordem e do progresso” (Bolle, 2004, p. 78), fugindo dos consensos e produzindo uma desmontagem da identidade nacional, do pacto social, da própria noção de povo. Neste sentido, o Grande Sertão: veredas pode ser uma verdadeira máquina de guerra, capaz de reconstruir um espaço liso para o pensamento. Quero dizer, um espaço que não tem suas fronteiras já demarcadas, seus lugares já fixados e seus movimentos disciplinados.  Um espaço liso em que seja possível pensar não só novos problemas teóricos, mas também fazer fugir aqueles debates que já foram estratificados em posições bem delimitadas e polarizadas pelas teorias. O romance pode ser capaz de reembaralhar o que já parece dado pelas teorias, recriando o espaço de experimentação que possibilita a rearticulação do conhecimento. É comum que a experimentação seja acompanhada de estranhamento, que é o sinal de que um desarranjo de sentido foi produzido. Esse caos libera vias para outros territórios. O encontro com um pensamento novo, que ao primeiro momento apenas se mostra como se fosse outro idioma, até que produz uma nova linguagem e um novo sistema lógico dotado de sentido. A literatura é capaz de produzir esta experiência-limite, abrindo a linguagem para o seu “fora”, a partir do qual ela pode ser transformada.

 

 

Referências bibliográficas

BOLLE, W. grandesertão.br. São Paulo: Editora 34 e Livraria Duas Cidades, 2004.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia 2. São Paulo: Editora 34, 1997, vol. 5.

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Porto: Rés-Editora, 2001.

ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

_________. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

SANTIAGO, S. Genealogia da ferocidade: ensaio sobre o Grande Sertão: veredas de Guimarães Rosa. Recife: Cepe, 2017.

“O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001”

Renan Porto
Renan Porto, baiano de Jequié, é ensaísta e poeta. Escreve ensaios que perpassam estética e política, filosofia e literatura, abordando temas como as relações entre corpo e tecnologias, transformações do capitalismo contemporâneo, etc. É mestre em filosofia do direito na UERJ com uma dissertação sobre ética e justiça a partir do Grande Sertão: Veredas, romance de João Guimarães Rosa. Publicou poemas nas revistas Escamandro, R. Nott Magazine, Gueto e Zunái. É autor do livro de poemas O Cólera A Febre, que foi seu livro de estreia publicado em 2018 pela editora Urutau.

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    1 Comment

    1. que texto fluido ! massa !

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