Ruído

Ensaio sobre a simpatia

Imagem: Christian Simonpietri – US Marines, Khe Sanh, Vietnam (1968)

 

Um ensaio de Vinicius Ferreira Barth a respeito da geração do rock ‘n roll influenciada pela guerra do Vietnã, e de que medida podemos fazer um paralelo, em todas as suas diferenças, com o nosso agora.

 

“O rabo em forma de ponta me aparece ao falar do agora. Cinquenta anos depois, alguns hillbillies tomam novamente o poder e atiram com as suas espingardas na cara de Peter Fonda e Dennis Hopper.”

 

          Algo anda me atraindo. Algo anda, tal como a distante gravidade de um buraco negro, ou como o olho de um furacão no Mississippi, me atraindo aos poucos. Distante, sim. A princípio imperceptível. Por vezes pensei que era só um corriqueiro e passageiro pensamento. Perdoem o excesso de informalidade e talvez o tom demasiado ensaístico. Mas é que algo anda me atraindo.

Era um pensamento sobre ele. Sim, sobre alguém que está pela Terra há praticamente tanto tempo quanto o homem, que desde então furtou a alma e a fé de muitos. Algo me trouxe até ele. Passei a simpatizar com o pensamento e esse diário convício. Sim, andei pensando sobre ele.

Seu rabo anda aparecendo, e é mais que só a ponta.

 

          Franz Liszt e a inadequação

Tido como o músico mais popular do século XIX, uma celebridade em toda a Europa e aclamado por muitos como o primeiro Rockstar, Liszt foi o responsável por escancarar as portas da música para o novo século que chegava, já destrancadas antes por Beethoven. Como acontece com toda celebridade, sua fama e vida pessoal precediam sua obra ao grande público. Conquistador, mais de fama que de fato – mas dono de uma inegável aura sedutora, sua vida centrou-se na busca por significado dentro de sua arte. Seu intelectualismo, marcado tanto pela seriedade quanto pela leveza do despojamento, ressaltado pelo virtuosismo inato, tudo isso, enfim, transformou Liszt numa figura única, além das fronteiras do bom-comportamento e da etiqueta. Usava o cabelo e o trajes à sua maneira apenas. Conquistava mulheres da realeza, fosse quem fosse. As críticas ao seu estilo pouco sobreviviam aos urros enlouquecidos das jovens durante suas performances. Ele era todos os quatro Beatles num só.

Aquele apareceu diversas vezes em sua música. Dizem que ele é um dos temas centrais da sua revolucionária Sonata em Si Menor, S. 178. – Fausto, Satã, ironia diabólica? Nada está dito ali, nada escrito. Mas sente-se. Vê-se a ponta do rabo, com simpatia: Mephisto Waltzes, Sinfonia Fausto, Sinfonia Dante.

A alegre ironia diabólica faz parte desse curioso Dorian Gray pianista – que envelheceu num convento, sozinho, na busca pelo sublime. (seria ele, afinal, Adrian Leverkühn, o pianista de Thomas Mann?). A primeira intenção que tive ao escrever essa coluna era dedicá-la apenas a ele, Liszt, mas fui desviado pela Simpatia e pelo som dos helicópteros. O Franz Liszt rockstar era um símbolo além das fronteiras terrenas do humano. O verdadeiro Franz Liszt, o terreno e humano, era um inadequado.

Todos estão contra mim. Os Católicos porque acham profana a minha música de igreja, os Protestantes porque para eles minha música é muito Católica, os Maçons porque acham minha música muito clerical; para os conservadores eu sou um revolucionário, para os “futuristas” sou um velho Jacobino. Quanto aos Italianos, apesar de Sgambati, quando suportam Garibaldi, me detestam como sendo um hipócrita, quando estão do lado do Vaticano me acusam de trazer Venusberg para dentro da Igreja. Para Bayreuth eu não sou um compositor, mas um agente publicitário. Os Alemães rejeitam minha música como se fosse Francesa, e os Franceses como se fosse Alemã; para os Austríacos eu escrevo música de Ciganos, para os Húngaros música estrangeira. E os Judeus me abominam, à minha música e a mim, por nenhuma razão.

(Carta de Liszt a Mihalovich)

O verdadeiro Franz Liszt mostrou a ponta do rabo. Ele era um rock ‘n roll nigger.

O Vietnam-Rock

“Jimi Hendrix era um nigger. Jesus Cristo e vovó também eram. Jackson Pollock era um nigger.”

As palavras de Patti Smith referem-se ao que é estar fora da sociedade. Estar fora do papel-moeda de troca em que a sociedade nos transforma. Quem também esteve fora da sociedade foi o Kurtz de Joseph Conrad, cultuado entre algum povo africano, ou o Kurtz de Francis Ford Coppola, na carne de Marlon Brando, um deus no Camboja. De acordo com este Kurtz, só existe uma maneira para se sobreviver ao horror, e é tornando-se parte dele. Do contrário, não se pode aguentar o horror que o horror traz.

O rabo em forma de ponta me aparece ao falar do agora. Cinquenta anos depois, alguns hillbillies tomam novamente o poder e atiram com as suas espingardas na cara de Peter Fonda e Dennis Hopper. Quem é que matou os Kennedys? Fomos nós, eu e você, responde aquele. Eu não consigo tirar o Vietnã da cabeça: uma guerra que durou vinte anos, iniciada apenas dez após os horrores da segunda grande guerra, uma guerra que ceifou com sua grande foice a vida – ou os membros – da geração do futuro de uma nação. Entre centenas de formas possíveis, há três que vejo como ideais para entendermos o Vietnã: pela via da épica, com Coppola; pela via da comédia, com Kubrick; pela via da tragédia, com Cimino. E todas apontam para o mesmo caminho, o da desumanização – talvez hiperumanização, no que há em nossa entidade de mais podre? Todas apontam para a ironia de que estamos trabalhando pelo melhor, pelo bem geral do planeta e pela salvação do futuro – enquanto o futuro explode em mil pedaços numa mina a céu aberto. Pergunte ao seu país o que você pode fazer por ele!

Minha geração, essa do agora, foi finalmente dominada pela função do capital. Do utilitarismo. Intelectualismo e arte são passatempos, são mercado, são fetiches, são ostentar, não são formas de mudar o mundo. Minha posição de filologista e tradutor dos Clássicos beira a piada. Ah, o excesso de futuro que nos torna tão cômodos! Tornamo-nos precocemente conservadores porque há que se conquistar precocemente a garantia do futuro, uma gorda aposentadoria talvez? As importantes redes sociais que diluem e ao mesmo tempo dão força. Diluem e dão força, diluem e dão força. Diluem o discurso vazio e dão força ao discurso vazio. Ou, quiçá, num universo paralelo, diluem discursos liberais e reforcem discursos conservadores. Porque, numa sociedade em que o futuro é tão presente, é importante conservar.

Conservemos.

Não foi só o amor que deixou de ser olho no olho. Foi tudo.

A geração Vietnã não tinha futuro. No future, no future for you. Mendigos e aspirantes a artistas dividiam quartos no mesmo hotel de Ginsberg, Dylan e Shepard. Era uma geração sem futuro cujas trombetas divinas foram precocemente incendiadas. A maldição dos J’s: Brian Jones, Janis Joplin, Jimi Hendrix, Jim Morrison. Apocalypse Now: This is the end. Esse é o fim, meu amigo. A efemeridade significou a união da juventude em torno da sobrevivência, do medo pelo fim, da revolta. Mas! quem são Robert Capa e Jim Nachtwey, senão relíquias do passado, pobres esquecidos? Quem são Kubrick e Coppola senão velhos malucos absorvidos pela cultura Pop, normatizados, estampas de camisetas de gente como eu e você? O Vietnã, assim como a Aids nos anos 80, significou a morte para aqueles que buscavam a igualdade, a liberdade, o amor e a vida. Este era um país porreiro, agora virou isso. ABRO PARÊNTESES: (Ontem eu tive o prazer inesquecível de assistir uma projeção do fundamental Easy Rider, lançado no brilhante ano de 1969, para uma genial sala que estava recheada de senhores e senhoras. Era uma sala de gente velha assistindo Easy Rider. Os jovens eram 10%. Eram velhos, e Easy Rider pertence a eles. Isso era o mundo me mostrando que Easy Rider é eles, e é deles. Mas é deles para o mundo, e o mundo, e quem veio depois, não se deu conta. O mundo vai te falar, vai te falar, vai te falar, vai cansar de te falar sobre a importância da liberdade individual, mas, ao ver um indivíduo realmente livre, o mundo caga-se de medo. Medo? Sim, cagado de medo torna-se perigoso. A violência é a resposta de quem inveja a liberdade.)

Não nos enganemos com a ilusão do crescimento das vozes minoritárias, que lutam com toda a sua honradez e justiça. O desvio ao padrão também está absorvido. Há mercado para o desvio e para a subversão. O erro da geração paz e amor não será repetido tão facilmente, não enquanto estivermos sob controle. O Rock foi obliterado. Whatever happened to Dear old Lenin? The great Elmyra and Sancho Panza? Whatever happened to the heroes?

(É possível que as minorias se organizem em guetos bem estabelecidos, bem aceitos, e isso resulte em maior preconceito e maior segregação? Não, isso não é possível. Ou é?)

Há 50 anos, na Paris de 1968, na Woodstock de 1969, na ansiedade pela chegada da Era de Aquário, lutávamos por algo. Joan Baez lutava por algo, foi presa por isso. Luther King Jr. lutava por algo, foi morto por isso. Nós do agora temos futuro demais pra lutar por algo. Conforto demais pra lutar por algo. Nossos colegas de geração, nossos irmãos jovens, também são nossos adversários. Esse é o fim, o fim da risada. Meu par de tênis da marca Mizuno, com o qual eu andei e corri livre por quilômetros sem fim, por lugares, por países, meu par de tênis Mizuno carrega a etiqueta: Made in Vietnam.

A simpatia pelo Diabo

Ao sair da sociedade e montar a sua própria, ao tornar-se ele mesmo um nigger e ao mesmo tempo o Horror, Kurtz-Brando torna-se aquele, sim, aquele. Kurtz-Satã não cita Milton, mas poderia: “Reinar aqui podemos salvos; minha escolha / Reinar é nobre intento, mesmo que no Inferno: / Melhor reinar no Inferno, que servir no Céu.” (Trad. minha. Paraíso Perdido 1.261-3: Here we may reign secure, and in my choice / To reign is worth ambition though in Hell: / Better to reign in Hell, then serve in Heaven.)

Na falta de heróis do contemporâneo, recorro ao passado, mas fazendo uso do rabo pontudo de Liszt. O louvor e o tributo ao passado não devem nunca ser submissos, como alguns covardes da minha geração insistem em ser ao repetir pateticamente os feitos de heróis de outrora. Mas presto, sim, meu tributo ao passado como Liszt fez com Beethoven, como Verdi fez com Rossini, como os Concretos fizeram com Sousândrade, o maior poeta que o Brasil já inventou. Presto meu respeito e minha homenagem não só ao nigger Liszt, mas a todos os roqueiros libertários da Geração-Vietnã, cujos acordes ressoavam apenas a morte e um mundo que não tinha futuro. Digo isso porque algo anda me atraindo. Algo anda me atraindo a eles. Sinto simpatia. Simpatia por essa gente sem futuro, e que não tinha futuro por causa de outras pessoas, pessoas estas que tinham simpatia em conservar seus próprios interesses. E as pessoas interessadas em conservar seus próprios interesses, esses homens de grande riqueza e bom gosto, sentem simpatia por algo muito mais perigoso, algo muito mais diabólico que o próprio Diabo. Uma simpatia que vem crescendo. Crescendo. Que aparece pelas urnas, pelos votos, que concorre. Eu me sinto atraído pelo olho do furacão, e sinto medo pelo desaparecimento desse infinito futuro que nos torna tão apáticos, covardes e conservadores, tão fracos frente a uma geração que não tinha nada e assiste hoje a Easy Rider numa sala de cinema cinquenta anos depois.

Nós temos tudo. O Rock só existe havendo causa. Não temos causa. Não temos ideal. A Raiva é uma energia. O excesso de futuro causará o fim do futuro de muitos. Nossas crianças entediadas podem acabar se encantando com brinquedos perigosos, assim como as crianças de cem anos atrás também se encantaram e pagaram por isso. Existe algo que mantém a chama acesa, já falei disso aqui. Posso estar certo de tudo isso, mas também posso estar errado.

A guerra, crianças, está a apenas um tiro de distância.

 

Vinicius F. Barth
Doutor em Estudos Literários pela UFPR. Tradutor das Argonáuticas de Apolônio de Rodes. Escritor e ilustrador. Autor do livro de contos 'Razões do agir de um bicho humano', (Confraria do Vento, 2015) e do livro de poemas e ilustrações '92 Receitas Para o Mesmo Molho Vinagrete' (Contravento Editorial, 2019). Ilustrador de Pripyat (Contravento Editorial, 2019). Estudante de saxofone.

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