Imagem: John William Waterhouse – Ulisses e as sereias (1891)
Vinicius Ferreira Barth comenta o recorrente uso de temáticas da mitologia greco-latina para a composição de álbuns de heavy metal.
‘Vem até nós, famoso Ulisses, glória maior dos Aqueus!
Pára a nau, para que nos possas ouvir! Pois nunca
por nós passou nenhum homem na sua escura nau
que não ouvisse primeiro o doce canto das nossas bocas;
depois de se deleitar, prossegue caminho, já mais sabedor.’
(Odisseia 12.184-8, episódio em que Ulisses é abordado pelas sereias. Tradução de Frederico Lourenço)
For all shall come to know me, as they fall unto their
Knees Zeus the thunderer, control my destiny
Blood and fire death and hate, your body I will desecrate
Dogs and vultures eat your flesh the hall of Hades waits
Die die die die
(Manowar – Achilles, agony and ecstasy in eight parts [1992])
A presença de temáticas fantasiosas no mundo do heavy metal não é novidade. Desde as primeiras manifestações do estilo no fim da década de 1960, passando pelo estouro do metal-unicórnio entre o fim dos anos 1990 e o início dos anos 2000, até os notáveis milhões de subgêneros existentes nos dias de hoje, todo o tipo de mito, dragão, herói, fada, feiticeira ou cavaleiro já foi homenageado em algum disco de metal. Nesse balaio de gato que se tornou a “temática” das bandas desse gênero, a Antiguidade Clássica está bastante presente como fonte de inspiração para melodias e letras. Mas pensando um pouco nesse assunto, fica a pergunta: está “bastante presente” até que ponto? E de que modo? Bom, começa aí uma longa história sobre a qual essa presente coluna malemal dará conta. Me enfiei num problemão.
A gênese desta reflexão se deu no ônibus. Após passar uns bons quarenta minutos pensando a respeito da morte da bezerra, me pus a cantarolar o tema principal da faixa The Odyssey (do álbum homônimo lançado em 2002 pela banda estadunidense de metal progressivo Symphony X). E muita coisa surgiu para se pensar a partir de um certo conjunto de fatos. Primeiro fato: a colossal faixa de mais de vinte e quatro minutos é dividida em sete partes – sendo a sexta parte subdividida em duas partes – que representam os principais episódios da épica homérica Odisseia. Segundo fato: a banda Symphony X – dentro das tendências de rotulação desse gênero de heavy metal – está classificada, além de metal progressivo, como banda de power metal, metal sinfônico e – a mais surpreendente! – metal neoclássico. Terceiro fato: a capa de The Odyssey, um grande sucesso nas estampas de camisetas da época, mostra, no maior estilo Marvel Comics, o episódio narrado no Canto 12 da Odisseia, em que Odisseu é abordado em seu barco, juntamente com seus companheiros, pelas sereias, representadas aqui como umas mais-que-sensuais succubus com asas de morcego. Quarto fato[2]: os trinta primeiros segundos da faixa The Odyssey parecem mais uma fusão de temas da série The legend of Zelda com o trailer de Os batutinhas (The little rascals, 1994) do que algo que tenha propriamente a ver com o poema homérico. Com efeito, a principal pergunta que me surge dentro da linha Fredolin Wolf, atravessando as vielas mais misteriosas da Vila Nori aqui em Curitiba, é a seguinte: o que, afinal, The Odyssey tem a ver com a Odisseia, além de uma frágil premissa temática? Sabe Deus – ou Zeus. Eu obviamente não me proponho a resolver a questão, nem a criticar musicalmente a qualidade das composições. Mas me proponho a pensar um pouco sobre como essa recepção acontece. Oras, muitos sabem da influência de obras como O senhor dos anéis sobre bandas como Led Zeppelin e Blind Guardian, e tantas outras. Muitos sabem também que The wizard, do Black Sabbath, é uma referência ao mago Gandalf (ou, segundo alguns, ao drug dealer da banda). Voltando ao Zeppelin, há a retomada clara da temática da Ilíada na faixa Achilles last stand (do álbum Presence, 1976). A partir da “nova onda do metal britânico” esse tipo de influência clássica e literária se intensificou, principalmente no trabalho de bandas como Deep Purple e Iron Maiden (cujas influências mais que bem conhecidas vão desde o Egito Antigo até o Edgar Allan Poe). E daí pra frente os exemplos são inumeráveis.
No terreno do rock progressivo, houve um estouro de criação de “álbuns conceituais” (ou seja, álbuns que apresentam uma narrativa central que guia a temática das faixas). Alguns atribuem o nascimento do formato do “álbum conceitual” a Woody Guthrie, com o álbum Dust Bowl Ballades, de 1940. Posteriormente o termo passou a ser mais associado ao rock, com o nascimento da rock opera e do rock progressivo, estilo praticamente definido pela criação de álbuns conceituais já a partir dos anos 1960. Álbuns antológicos como Dark side of the moon (1973) e The wall (1979), ambos do Pink Floyd, são bons exemplos disso. No heavy metal da década de 1990, álbuns conceituais e rock operas se disseminaram a partir de trabalhos como o da banda italiana Rhapsody (cuja história da Emerald sword saga se conta através de cinco álbuns, entre 1997 e 2002), do grupo Avantasia (com os álbuns The Metal Opera, partes I e II, 1999-2002), além do muito bem recebido Nightfall in Middle-Earth (1998), do Blind Guardian, baseado em The Silmarillion, de J. R. R. Tolkien[3]. Isso sem mencionar os trabalhos produzidos por bandas de metal progressivo, como a já citada banda Symphony X e o Dream Theater, que retomam a filosofia de álbuns conceituais usada por bandas de rock progressivo em décadas passadas.
Mas como fazer para retratar uma história longa e humana, demasiadamente humana e complexa (ou seja, uma épica, no sentido literário do termo), dentro de um álbum de heavy metal sem que isso pareça caricato ou superficial, tal como um filme hollywoodiano “inspirado” na guerra de Troia, por exemplo?
Tendo esse pano de fundo em mente, volto ao eixo central da reflexão. Será que a antiguidade clássica greco-latina acaba sendo apenas mais um conjunto de “contos de fadas” para ilustrar as composições dessas bandas? Numa breve pesquisa sobre o tema acabei me deparando com um texto que me intrigou ainda mais. The metal age: the use of Classics in Heavy Metal music, publicado em 2015 na página da Society for Classical Studies e escrito por KFB Fletcher (link para o texto aqui), defende que nunca houve um momento tão bom na história como agora para o encontro entre a antiguidade clássica e o heavy metal. O autor, professor no curso de Estudos Clássicos da Louisiana State University, atenta para a possibilidade, através da audição de álbuns de heavy metal, de um jovem poder despertar em si um interesse pelos estudos da literatura clássica (mais ou menos do mesmo modo como nós torcemos para que um leitor de Percy Jackson e os Olimpianos se interesse por literatura séria). Pois bem, não deixa de ser uma justificativa interessante. O autor parece também entusiasmado ao abrir o texto comentando os lançamentos de dois álbuns de bandas italianas, feitos no mesmo ano, baseados na temática da Eneida de Virgílio. Um deles Aeneid (2013), da banda Heimdall, apresenta na sua capa uma inexplicável cruz bizantina. O som dessas bandas, tendendo em um caso ao power metal, no outro ao death metal cantado em latim, não deixa de ser metal, independente do tema. Conhecendo um pouco mais a fundo as referências apresentadas pelo autor, a interrogação volta a ficar evidente: apesar da clara reapropriação temática, o que isso tem realmente a ver com literatura clássica?
O entusiasmado Fletcher não parece preocupado com essa minha recorrente interrogação. Mas como eu mencionei mais acima, o texto acabou me intrigando, e isso veio pela explanação feita pelo autor a respeito dos motivos da busca do heavy metal por temas fantasiosos e pela épica. Admitindo ser o heavy metal um gênero conservador e escapista, intimamente relacionado com um certo ideal de poder, KFB Fletcher diz que o gênero foge dos problemas da vida cotidiana, e as referências literárias, sendo a literatura Clássica apenas um dos gêneros buscados, ofereceriam diferentes rotas para essa fuga. Ainda de acordo com o autor, apenas a “épica” poderia ser um tema adequado para um estilo musical tão grandioso, seja em termos de figurino, volume ou temas, já que o sense of grandeur do estilo não estaria evidente apenas na música (ela mesma assustadoramente bombástica, segundo ele) mas também na duração das faixas: “Achilles, Agony and Ecstasy in Eight Parts, do Manowar, dura vinte e oito minutos – com um solo de bateria de cinco minutos intitulado Armor of the Gods.”
Talvez o leitor já perceba para onde a minha argumentação está sinalizando. Oras, em primeiro lugar, podemos falar em termos de extensão e grandiosidade quando pensamos, por exemplo, em ópera. Falando de sense of grandeur, dá pra pensar imediatamente no ciclo megalomaníaco de Der Ring des Nibelungen (1876) de Richard Wagner, cuja execução pode alcançar impressionantes 15 horas. Mais do que isso, sendo um pouco do que me assombra na argumentação desse professor de latim a respeito de “poder”, pode-se pensar também em sense of grandeur quando se lembra da influência que Richard Wagner teve sobre Hitler (que teria um certo potencial pra fazer parte do fã clube do Pantera, não?). Ademais, podemos lembrar da obra considerada como a fundadora do gênero operístico, composta por Claudio Monteverdi num período de transição do Renascimento ao Barroco, que também está inspirada pela mitologia grega. L’Orfeo (1607) conta a história da descida de Orfeu ao Hades em busca de sua amada Eurídice. Aliás, toda a história da música, principalmente do Renascimento em diante, está repleta de reutilizações de temáticas da literatura clássica, e adentrar nesse assunto nos desviaria do tema.
[Linda Watson como Brunilda, na frente, e Falk Struckmann como Wotan em “Die Walküre”, segunda parte do Anel do Nibelungo de Wagner, em Bayreuth, Alemanha.]
Fletcher ainda continua o texto desenvolvendo a ligação da grandiosidade do heavy metal com o poder, no sentido de ser um estilo direcionado ao gênero masculino da classe trabalhadora (o que era verdade durante a gênese do heavy metal de Birmingham no fim dos anos 1960[4], mas que obviamente não se aplica nas décadas seguintes), classe essa atraída por figuras masculinas dominantes como Aquiles e Alexandre, o Grande. Ademais, o uso do Latim, para além de suas ligações com o Cristianismo e com as temáticas satanistas de algumas bandas, também serviria para demonstrar escapismo e poder, além de prover alguma profundidade extra às composições (se não bastassem os títulos extravagantes, como o já citado Achilles, Agony and Ecstasy in Eight Parts, ou Blood, Courage And The Gods That Walk The Earth, da pouco modesta banda Ex Deo). E por fim, numa conclusão ainda mais curiosa do que todas as anteriores, KFB Fletcher afirma que a busca pelo escapismo e pelo poder já é passada, e que as bandas agora buscam, através dessas temáticas, a afirmação de seu próprio nacionalismo (!). E por aí continua enumerando outros diversos casos de bandas que inventaram as mais diversas maneiras de se embasar em temáticas clássicas, tal como a banda suíça Eluveitie, que “narra” as Guerras da Gália sob o ponto de vista dos celtas (?) em seu álbum Helvetios (2012), ou a banda alemã Rebellion, cujo álbum de estreia, lançado em 2002, chama-se Shakespeare’s Macbeth – A Tragedy in Steel.
Parece um pouco óbvio agora o meu desapreço pelo uso da temática clássica como desculpa para o engrandecimento de um estilo musical que a princípio não teria nada de melhor ou de pior que outros estilos musicais nascidos durante o século XX. Sou particularmente fã da reapropriação de técnicas da chamada “música clássica” por músicos como Rick Wakeman e Ritchie Blackmore. Sou particularmente fã de Alexander the Great (1986), do Iron Maiden, e de Lavdate Dominvm (1998), do Helloween. Como eu disse lá no início, não me cabe neste texto (ou em nenhum outro) julgar a qualidade musical das referidas peças e bandas. Mas pensando afinal se o background clássico greco-latino não estaria servindo como um pano de fundo que acaba sendo muitas vezes caricato para uma glorificação exacerbada de bandas de metal, eu tendo a achar que sim, e que isso acontece na maioria das vezes. E em muitas delas na forma de equívocos ou de interpretações rasas, como foi o caso da já citada capa de Aeneid da banda Heimdall, que traz aquela inexplicável cruz bizantina, ou de letras como as de Manowar[5], ou, num dos exemplos que mais me chamaram a atenção, no álbum Argonautica (2015) da banda grega Sacred Blood.
[Sacred Blood – Argonautica (2015)]
Argonautica se propõe a narrar o mito de Jasão e dos argonautas em busca do velocino de ouro através de 11 faixas, num total de 48 minutos de música. Sua capa mostra a cena presente no início do quarto canto do poema, com a conquista do velocino por Jasão e Medeia dentro da gruta de Ares. A feiticeira Medeia, uma das personagens mais terríveis da mitologia grega, que no poema consegue dominar o dragão guardião do velo apenas com o poder do seu terrível olhar, e que em seguida o adormece com a sua poção, está transformada numa ninfa que atira pó de pirlimpimpim sobre a fera. Jasão, que no poema é descrito como acovardado diante da fera e escondido atrás de Medeia, posa como um valente legionário romano. As faixas finais do álbum, The golden fleece pts. I & II, que passam por esse capítulo, apresentam seções musicais inspiradas por música folk e celta (ouça aqui, 6:55 em diante), convenções mais que usuais dentro desse ramo do heavy metal, mas que combinariam melhor com a narração do mito do rei Arthur, por exemplo. As letras genéricas usadas por essa e por tantas outras bandas praticamente não auxiliam em nada para a compreensão do mito. Um comentador em um blog de heavy metal que encontrei fala que praticamente não se consegue ouvir ou entender as letras que se cantam durante o álbum.
Assim, a ideia bastante hollywoodiana do uso do termo “épico” parece ilustrar bem o universo em que habitam diversos ramos do heavy metal mundial. Diferente de obras de arte que realmente conseguem reler e revalorizar o mito em seu próprio tempo (os exemplos são infindáveis, mas eu mencionaria aqui um filme como Medea, 1988, de Lars von Trier [filme completo aqui], ou o incrível álbum do Grupo Girau intitulado !Evoé, de 2010-11, inspirado pela tragédia As Bacantes, de Eurípides), diferente de obras assim, o heavy metal, na maioria dos casos, assim como Hollywood o faz, reduz o mito épico a um punhado de elementos um pouco inocentes, como o heroísmo exacerbado, o machismo, a glória da batalha, a morte honrada, etc. Um filme bobo como Clash of Titans (2010, dirigido por Louis Leterrier), o lastimável Troy (2004, direção de Wolfgang Petersen), ou o pior-de-todos Alexander (2004, direção de Oliver Stone), reforçam esses estereótipos rasos e transmitem ao grande público a ideia uma Grécia antiga fictícia e ingênua. Quando Fletcher comentava em seu texto a respeito da fuga do heavy metal em direção a outros mundos, na negação dos problemas da realidade, parecia esquecer dos lados mais humanos que essa literatura nos narra. Até mesmo a Terra-Média é uma complexa metáfora de problemas imensamente reais. Que dizer então da gigantesca e fundamental sabedoria homérica, dos muros de Troia, de Ítaca, de Roma, onde até mesmo o mais valoroso herói pode também ser o mais vil ou injusto, ou covarde, onde a nefasta dor de um amor negado pode causar o suicídio, o infanticídio, onde a tragédia da maldição de uma família pode se perpetuar por gerações e causar as maiores desgraças, como é o caso do terrível mito da casa de Atreu, cantado pela banda estadunidense Virgin Steele nos álbuns lançados em 1999 e 2000.
Num dos casos mais chocantes, me deparei com os canadenses da banda Ex Deo, que se propõem a narrar os feitos do Império Romano através dos seus álbuns: eles são a primeira Roman Legion black metal band do mundo (!!!). Maurizio Iacono, também vocalista da banda Kataklysm e idealizador do grupo, justificou a ideia de cantar os feitos de Roma por causa de seu “orgulho por ser italiano”, mesmo tendo nascido e crescido no Canadá. Diz ele que “Ex Deo é uma banda de mais prestígio. (…) Kataklysm é uma world-warrior band, que está na estrada constantemente, ligada com assuntos sociais. A Ex Deo é uma coisa artística, you know.” E embora pareça piada, eles se levam muito a sério mesmo! Seus rótulos, como já mencionado, passam também por coisas pouco claras como death metal sinfônico, e seus clipes apresentam uma pretensa “produção cinematográfica” em que os próprios membros tornam-se soldados de elite da Décima-terceira legião para derrotar seus inimigos, espalhar sangue pra todo lado, ser bastante macho e pegar as meninas. Após ver e rever algumas vezes essa obra-prima, concluí que o clipe de The final war (Battle of Actium) (2009, link aqui) é o pior clipe de metal que eu já vi, tendo desbancado o antológico clipe de Rain of a thousand flames (2001), do Rhapsody, cujos comentários são alguns dos mais bem humorados que já vi em páginas de heavy metal no YouTube (e eu gosto muito desse álbum e sou fã de Fabio Lione). E os motivos que me levam a essa conclusão são vários. Em primeiro lugar, Ex Deo parece tentar reduzir a história do império romano para um grupo de Hells Angels de saia que saem esporrando todo mundo, pegando as garotas e fazendo pose de mau, centrados insistentemente na figura do vocalista Maurizio Iacono e suas atuações a lá Framboesa de Ouro[6]. Segundo, um clipe que parece uma paródia do filme 300 (2006, direção de Zack Snyder) feita pelo Massacration é tratado como um marco histórico pela banda que, “assim como o Império Romano, está criando a história.” Menos, galera. Terceiro, e falando muito sério agora: todo mundo sabe que bandas desse estilo falam de violência das mais variadas formas. Mas em pleno ano de 2016, como se não bastasse a violência gratuita e acéfala dos clipes (usando o império romano como desculpa), é dose se deparar com machismo, misoginia e glorificação da guerra, como se vê no clipe de The Roman (que não vou linkar aqui) e que se reflete na cabeça do grande número de seguidores que a banda possui, como se vê também na seção de comentários aos vídeos. Como já falado em outras colunas dentro desta revista[7], a guerra não se glorifica em absoluto, e posso usar os próprios antigos para responder a uma banda como essa[8]. Bom, pensando melhor, acho que é o que devemos esperar de uma Roman Legion black metal band. Apesar do entusiasmo de KFB Fletcher, Ex Deo representa para mim um real desserviço à História e aos Estudos Clássicos, pior do que qualquer deslize ingênuo de bandas que vão apenas buscar inspiração em mitos antigos.
O canto doze da Odisseia fala sobre como Ulisses, após deixar a morada de Circe, enfrentou os cantos das sereias e diversos outros desafios até chegar sozinho à Ogígia, a ilha de Calipso. Esta coluna está guiada por esse canto homérico. As sereias tentam Odisseu com o conhecimento dos feitos futuros ao redor do mundo, pois elas sabem tudo o que já foi e tudo o que virá a ser. “Aquele que nos ouve sairá não só deleitado, mas mais sábio.” Ele, amarrado ao mastro de sua embarcação, segue tentado, porém sem ceder, e consegue escapar. Um episódio curioso esse. As sereias acabaram virando, ao longo da história, alegorias para a ideia de “conhecimento”, de “teoria”. Adorno e Horkheimer as usaram para falar do “mito do esclarecimento”. Cícero disse que as sereias representam o desejo humano pelo conhecimento. Platão disse que ouvir passivamente as suas vozes, tal como o que foi feito por Ulisses, representa a preguiça intelectual. Me parece que o heavy metal, na sua relutância em ser reinventado, no seu conservadorismo, atravessou passivamente o mar sem ouvir a verdade revelada pelo canto das sereias. Alcançou por fim a ilha de Calipso e lá vive até hoje, soando ainda do mesmo jeito, falando ainda das mesmas coisas, buscando na história alguns mitos que, sendo gregos, célticos ou nórdicos, vão acabar soando quase do mesmo jeito. Seus grandes feitos já passaram e suas grandes bandas criaram os grandes álbuns que tinham que criar. Como anunciado pelo Helloween em Falling higher (1998), “Metal will never die”. Ele continuará lá, imortal e confortável, imutável, escapando da realidade e vivendo na ilha isolada dentro dos braços de Calipso, incapaz de ir embora, incapaz de mudar, vivendo às custas das memórias de um passado glorioso enquanto se queda aprisionado na ilha da fantasia.
Epílogo
Durante as diversas reflexões a respeito desse tema, acabei esbarrando em alguns álbuns da banda japonesa instrumental The Black Mages, que eu não ouvia há muitos anos, e percebi o quanto esse trabalho tem a ver com a apropriação de mitos pelo heavy metal. A banda foi formada em 2002 por compositores que trabalharam para a desenvolvedora de jogos eletrônicos Square Enix, com destaque para o legendário Nobuo Uematsu, que trabalhou por quase vinte anos compondo as trilhas sonoras para a série Final Fantasy. Vários dos temas compostos por ele para os diversos jogos de Final Fantasy foram adaptados para versões rock/heavy metal pelo conjunto The Black Mages. E como várias dessas faixas estão presentes em batalhas antológicas nesses jogos, foi impossível não me arrepiar ao ouvir coisas como Those who fight further (2003). Um videogame e um mito criado especificamente para esse jogo. Uma narrativa complexa, dentro de suas possibilidades, e uma conjunção perfeita entre mito e música, onde um não vive sem o outro. Ouvir uma música como Dancing mad (2003) me transportou imediatamente para uma reencenação do mito da batalha final contra Kefka em Final Fantasy VI. Dancing mad é uma bela composição dividida em quatro “movimentos”. O segundo deles apresenta uma cadência executada no órgão e composta no formato de fuga, bastante semelhante ao Prelúdio e fuga de J. S. Bach e ao Messias de Händel. Letras em latim foram adicionadas posteriormente para outras execuções ao vivo – parece ser tudo o que as bandas de metal progressivo e melódico desejam fazer. Mas embora tenha sido letrada, a sua versão simplesmente instrumental já diz tudo. Enquanto o tema toca e assume um tom cada vez mais nefasto, um coro canta “Kefka, Kefka”, enquanto o próprio Kefka desce dos céus completamente metamorfoseado num deus, desprovido de qualquer razão pertencente à esfera do humano, promovendo o caos. Nobuo Uematsu, um bardo pertencente à era tecnológica, com um pé no mundo orquestral e outro no rock progressivo, cantou o mito de maneira inesquecível. Quem jogou vai saber do que falo.
[1] Nome pejorativo para o metal melódico e algumas variantes, como o power metal e o metal sinfônico.
[2] Serei criticado por chamar isso de “fato”.
[3] Já o álbum A night at the opera, de 2002, fala de temas como a disputa por Jerusalém, a Ilíada, Galileu Galilei, Rei Arthur, etc. Lembra do “balaio de gato”?
[4] Fletcher parece confundir o “escapismo” fantasioso do heavy metal com a reação deveras real da classe operária de Birmingham no final dos anos 1960, reação essa bastante enraizada em sua dura e pobre realidade de uma juventude pós segunda-guerra, o que gerou bandas como o Iron Maiden e o Judas Priest, num movimento um pouco parecido com o que gerou o Punk alguns anos depois. O artigo citado por Fletcher que trata do assunto, escrito por Leigh Michael Harrison, pode ser conferido parcialmente aqui: https://www.questia.com/article/1G1-238770845/factory-music-how-the-industrial-geography-and-working-class
[5] As letras da banda Manowar chegaram ao ridículo ponto de serem homenageadas pela página da web intitulada Manowar lyrics generator, disponível em: https://dmatoso.com/manowar-lyrics-generator/
[6] Leia-se o comentário de Ulysses (!!!) postado há um ano para o clipe de The final war (Battle of Actium): “A única coisa irritante sobre os clipes desta banda é o quanto eles estão centrados no vocalista. Como se estivessem tentando fazê-lo ganhar tipo um Oscar.”
[7] Mantendo a chama acesa: http://rnottmagazine.com/mantendo-a-chama-acesa/ ; Tróiades: http://rnottmagazine.com/troiades/
[8] Frase atribuída ao lírico grego Píndaro: “A guerra é encantadora àqueles que ainda não a experimentaram.”