Imagem: foto de Alessandra Fratus para a contracapa do álbum O tempo e o branco de Consuelo de Paula.
Marlon Anjos entrevista essa mineira fabulosa chamada Consuelo de Paula, dona de uma das mais belas vozes da música brasileira contemporânea.
“Talvez a melhor resposta seja a obra que tenho criado e produzido. Ou talvez eu consiga responder cantando ao vivo, quando a entrega acontece e uma comunicação além das palavras se dá.”
♦ Como, onde, quando e por quê.
Acho que tudo que é grande demais pra gente, demoramos a pronunciar a palavra. Por respeito, medo, importância, não sei bem, mas demorei muito tempo para responder, quando interrogada sobre o tema – sim, sou uma artista. Nasci numa cidade pequena do interior de Minas Gerais chamada Pratápolis (nome original: “Espírito Santo do Prata”!) e claro, nascemos com esse defeito genético (risos) – portanto, eu tinha um espírito inquieto, apaixonado, capaz de perder o sono para apenas poder tocar na fanfarra, apenas por causa de um ensaio do bloco carnavalesco. A única coisa que me tirou o sono, além da arte, foi quando aguardei uma bicicleta prometida! A impressão que me dá é que fui fazer justamente o que mais me tiraria do conforto em todos os sentidos. E estou sempre saindo desse conforto, mesmo na minha profissão. Sua pergunta é maravilhosa e impossível de ser respondida com palavras. Talvez a melhor resposta seja a obra que tenho criado e produzido. Ou talvez eu consiga responder cantando ao vivo, quando a entrega acontece e uma comunicação além das palavras se dá. Através da canção consigo me expressar e acalmar a minha inquietude, a minha vontade de dizer outras palavras; é durante o tempo de cantar e de compor que eu consigo me comunicar mais profundamente. É a eterna busca pelo momento poético. O completo vício pelos momentos de transcendência.
Quando saí de minha cidade para estudar, fui para Ouro Preto fazer farmácia e quando cantei na “calourada”, na Casa da Ópera de Ouro Preto (Theatro Municipal), o que aconteceu ali com o público foi tão forte e bonito que eu me recolhi por alguns anos. Quando cheguei na cidade de São Paulo é que comecei a construir o que faço hoje, no sentido de profissão mesmo. E segui, com minha antena, mente, corpo e alma, os sinais, o curso dos rios; caminhei sempre a serviço das obras musicais. Só exigi de mim, e dei o meu melhor, me dediquei plenamente, 24 horas por dia. Entre trabalhos, ócios, sons, silêncios, fui criando… Produzi e dirigi seis CDs, um DVD e um livro. E tenho muita coisa inédita, pois o mundo real, concreto, dos valores do mercado, etc., não conseguiu acompanhar o meu ritmo (risos). Mas, sigo mais teimosa do que nunca!
♦ Tradição e modernidade, como esses dois elementos se relacionam em sua música?
A tradição me inspira, me oferece alimento, faíscas para atravessar a modernidade, para ser contemporânea, para cantar de acordo com meu tempo, com nossos dias, dentro do meu estilo, claro. Dentro do que sei e consigo fazer. Desconfio que quando é arte, fazemos algo que depois de anos a comunicação aumenta. Como acontece com meu CD Dança das Rosas, de 2004, que nunca foi tão compreendido como agora. O tempo é relativo. A tradição e a modernidade se encontram na arte, mas com os elementos que imagino existir num artista, elas se iluminam, elas ficam atemporais com a nossa inquietude na hora de compor e interpretar, com nossa verdade, entrega, estética, trabalho e inspiração.
♦ Quem são as suas influências?
O que a gente vive é o principal material de partida, e talvez de chegada. Ouvi muitos ritmos populares vindo dos congos, dos moçambiques, dos carnavais, das serenatas e da música brasileira em geral. Ouvi também muita coisa do mundo. E ouvi e ouço nossos grandes artistas. O cinema também me deu muita coisa. A poesia, a arte em geral. As coisas coletivas, a arte e a natureza são fontes provocadoras, são inspirações quase diárias. Adoro muita gente que faz música no Brasil e no mundo, mas nem começarei a citar nomes. Adoro a geração que está se anunciando!!!
♦ Você possui admiração por algum personagem histórico?
Vários. Muitas mulheres guerreiras (Chiquinha Gonzaga, Pagu, Violeta Parra, Carolina de Jesus, etc), muitos homens guerreiros (Zumbi dos Palmares, Che, Gandhi, etc).
♦ Como funciona o seu processo criativo na composição musical?
É um processo diverso e que tem mudado com o tempo, com as obras. Comecei fazendo melodia e letra (tudo junto), isso antes do meu primeiro CD que é uma obra da intérprete. Depois conheci parceiros que eram melodistas e eu os provoquei com letras como eles também me provocaram com melodias. Ultimamente tenho feito melodias para letrar depois, ideias rítmicas. O ritmo me guia muito. E tem sido tudo muito fluente, não dou tempo para nada interferir. Deixo o raio me atingir.
♦ Você perde a noção do tempo quando produz?
TOTALMENTE. Já cheguei a levar susto quando vi o dia tão claro e o relógio marcava oito horas da manhã (meu recorde – risos). Não sei parar antes do tempo da criação, ela comanda.
♦ Por gentileza, você poderia comentar a seguinte composição: Espelho Cristalino?
Pois é, esta foi uma das canções escolhidas para meu primeiro CD. Ela entrou no terço em que falo com a terra, com o chão, com a natureza, com os “baiões”. Uma belíssima canção de Alceu Valença. Uma poesia incomum. E adoro metalinguagem: nessa canção, ao mesmo tempo em que ele fala da natureza, ele fala do nosso ofício. E ainda tem o refrão popular de Alagoas: “mas, eu tenho meu espelho cristalino…” Foi esse refrão o mote para o compositor, algo com o qual me identifico muito: a paixão pelas belezas populares.
♦ Existe algum artista brasileiro na ignomínia, mas que merecia ser renomado?
Nossa, a maioria. Desde a minha geração que a grande mídia rompeu definitivamente com a arte. Bem, eu acho a arte uma senhora muito exigente e qualquer fator que entre no meio dela que não seja motivo artístico, ela se retira. E a gente sente isso. Não acho que a música deva ser produzida só como arte, mas não é saudável, de forma alguma, excluírem da grande mídia a música de arte. A melhor produção se dá fora das grandes gravadoras (fora, portanto, do mundo das propinas) e tem muitos artistas maravilhosos que merecem maior reconhecimento e melhores condições de trabalho. São centenas.
♦ Você produz música para curar os males da alma?
Eu acho que a arte mesmo não aceita palavra ao lado dela. Arte de …. Não, quando é arte, é arte e pronto. E assim não tem uma função exatamente. Por isso sou tão apaixonada pelo meu ofício que é o meu bem e o meu mal, que é o resultado das minhas facilidades e das minhas dificuldades.
♦ O que a guia na escolha do repertório de um novo álbum?
No samba, seresta e baião, que é um CD de intérprete, eu parecia guiada por um trio de ideias que se misturavam; pela tentativa de unir esteticamente coisas de tempos distantes entre si, ritmos que pareciam ter seus símbolos, suas almas, seus jeitos. Tentei expressar o meu lugar, através da pessoa que sou, através do que a música faz em mim. Nos CDs autorais, parece incrível, mas a obra é soberana. Não é bem assim, mas a impressão é a de que apenas obedeço. São aquelas canções que nascem pertencentes àquelas obras, com cheiro peculiar, sob uma cor determinada, com tema central. E sinto que faço uma única obra, os CDs são autorreferentes, um conversa com o outro, indefinidamente. É quase insuportável.
♦ Goethe dizia que “a música nasce com as pessoas e não exige experiência de vida para ser feita”. Você concorda?
Concordo até certo ponto. A música nasce com a gente sim. Alguns têm, além disso, a vocação. E o exercício da profissão exige vivência, maturidade (isso pode se dar muito cedo para alguns ou mais tarde para outros). Inclusive o material para desenvolvimento estético, o material para inspiração, etc., tudo isso é da vivência, da experiência. Depois vem o além disso… A junção, algo que é fruto de trabalho, mas parece milagre.
♦ Consuelo, quem é hoje o(a) grande compositor(a) brasileiro(a)?
Ah, difícil isso, um nome, porque acho que cada um, em seu estilo, pode ser o maior. Tem muita gente compondo coisas lindas. Mulheres, homens, gente de todas as idades, regiões, estilos. O Brasil é muito rico. Difícil afirmar isso, mas fazemos a melhor música do mundo. Só que ela sofre o ataque de uma guerra e isso tem efeitos terríveis sobre a produção brasileira de música de arte. Pode ter a certeza de que não querem que nos expressemos verdadeiramente, não querem que nos tornemos imensos através da música.
♦ Qual foi o grande autor que você descobriu e quem você ainda não descobriu?
Não foi bem descobrir, mas meu parceiro de composições, Rubens Nogueira, foi um excelente melodista que este país teve e fiz com ele algumas obras pelas quais sou completamente apaixonada. Que melodista!!! E tem tanta gente a descobrir! Neste momento em que eu lhe respondo essas perguntas maravilhosas, tem algum índio compondo, alguém fazendo mais um samba, um novo talento começando a se expressar com um som ainda desconhecido por nós, algum jovem fazendo alguma bendita música, seja em que ritmo e estilo for, alguma mulher compondo algo surpreendente, do Oiapoque ao Chuí! Só em São Paulo, nossa, precisaríamos de centenas de anos para descobrir tudo! Isso é bom demais, isso é vida!
♦ Qual obra de arte você alteraria sem cerimônia?
Com esta denominação: obra de arte, nenhuma.
♦ Maiakovski dizia: “A terra em que passa necessidade, não se esquece jamais”. Ser brasileira te causa alguma comoção cívica?
Maiakovski é demais! E, a partir do lugar dele, ele fala com o mundo. Por isso é tão verdadeiro. O que nos comove por sermos brasileiros é o que nos comove por sermos humanos. Cantar nosso lugar é cantar o mundo. E só eu posso cantar inspirada nas imagens gravadas na minha alma; mas quando canto isso, canto a essência das imagens de muitos outros. Por isso não perdemos a admiração (o artista não pode perder a capacidade de admirar, senão, não fará arte), por isso admiramos o que o outro faz de acordo com as coisas e as sensações que lhes inspiraram. Não esquecemos a terra em que pisamos, sofremos, lutamos e amamos. E por não esquecermos, amamos o mundo. E por não esquecermos, podemos pisar estrelas.
♦ Fale aqui sobre o que você sempre quis falar, com toda a liberdade, ou responda aquilo que nunca te perguntaram.
Bem, se fosse um outro tempo, acho que eu já teria dito tudo, mas preciso dizer e agradecer a todos que continuam criando, fazendo arte mesmo com aqueles que comandam o mundo nos dizendo para não fazermos (os tais um por cento que detêm noventa por cento do dinheiro em suas mãos). Façamos mais e mais. Quando a gente pensa que não dá mais para nos dedicarmos tanto a esta profissão, algo acontece e nos dá ânimo para seguir. Seja uma nova canção ou um encontro com outro colega, um convite novo de trabalho, um depoimento que recebemos do público, enfim, a verdade é que é possível e vale a pena passar a vida em estado de arte, mesmo com os sofrimentos inerentes e mesmo com os sofrimentos impostos por um sistema. Mesmo assim, o prazer por estarmos cumprindo nossa função é infinitamente maior. Sigamos juntos! E agora, eu daria um abraço demorado em todos. Até breve, de preferência, no encontro proporcionado por uma apresentação ao vivo!