[vc_row][vc_column][vc_column_text]
Imagem: Vinicius Ferreira Barth – vista para o Riachuelo (2011)
[/vc_column_text][vc_column_text]Eu nunca seria capaz de desmistificar uma cidade do tamanho de Buenos Aires. É muita imponência para apenas uma pessoa que vem de uma capitalzinha, uma cidadezinha do interior, uma Curitiba. É muita insolência. Mas mesmo uma formiga caipira acha os caminhos para o subterrâneo. Por Vinicius F. Barth.
[/vc_column_text][vc_column_text]
“Dizem que Buenos Aires é uma cidade muito boa para a atividade de escrever. Porque o portal para o inferno está no bairro de Flores, junto com seus gatos e seus diabos vestidos de homem que passeiam em torno da Igreja, todos observados pelo Anjo Cinza.”
[/vc_column_text][vc_empty_space height=”52px”][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Dizem que Buenos Aires é uma cidade muito boa para a atividade de escrever. Talvez exista ali uma poesia indescritível no ar, naquela tristeza que paira sobre os portos e sobre as pessoas. Buenos Aires, essa carcaça que carrega um passado glorioso que nunca volta, assemelhando-se a Lisboa numa rememoração de potência mundial, num fado renomeado tango. Pois se existe, na Sudamerica, um bom paralelo a Lisboa, ele está certamente em Buenos Aires, nesse grande cadáver que mira o mar e as ondas de passión, ressentimento, orgulho, e num futebol que é tão diferente do nosso, não do passo de samba mas do sangue, suor e lágrimas. Argentina do gol de mão. Buenos Aires de gente velha e decrépita, que cultiva suas corcovas nas costas enquanto apodrece dentro de apartamentos de janelas que nunca se abrem, e que tomam todo santo dia um café terrível naquele estabelecimento que existe há mil anos administrado pela mesma família, velhos que fizeram, durante os anos dourados do Copacabana Palace, aquela viagem ao Rio e a Búzios. Amamos Búzios e Vinicius de Moraes.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]
Buenos Aires da queima de mulheres, do estupro, do beba, que eu pago. Do preconceito. Da brancura europeia de gente que não lê Martin Fierro, dos escravos bolivianos, peruanos, equatorianos e venezuelanos, da corrupção na esfera política e galante e do taxista que economiza seu rendimento em dólares e engana passageiros com trocos errados e trajetos inóspitos que passam pelo coração do tango malmequer nos becos de San Telmo. Cidade do trânsito enervado que só xinga e nunca bate, do gás vazando em edifícios históricos feitos para abrigar os restos mortais de Dante Alighieri, e do cadáver roubado de Evita Perón que continua circulando pelas ruas dentro de um carro qualquer com uma placa de identificação falsificada. Buenos Aires das ruas de Borges, que andou por aqui, por ali, por ali e por ali, que tomou café ali com Gardel, ali com Maradona, ali com Giuseppe Verdi e ali com Carlos Menem. Buenos Aires da memória infinita e da absoluta falta de presente. Argentina da copa que o Messi nunca ganhou.
Dizem que Buenos Aires é uma cidade muito boa para a atividade de escrever. Porque o portal para o inferno está no bairro de Flores, junto com seus gatos e seus diabos vestidos de homem que passeiam em torno da Igreja, todos observados pelo Anjo Cinza. Mas talvez seja por causa da medialuna recheada com doce de leite, talvez porque o labirinto de Borges esteja no Parque Chas, de onde nunca se sai. Buenos Aires surreal, cidade de Cortázar que é tão popular que não comentaremos. Cidade desconhecida para os próprios moradores, cidade do equívoco e do engano. E isso se diz sobre ela:[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]
A invenção
[/vc_column_text][vc_column_text]Quis visitar uma casa em que vivi faz anos.
Como não recordava o endereço, inventei um.
Cheguei à porta e não pude reconhecer o umbral,
a cor das janelas, o vidro da portada.
Para não ficar desorientado, tive que criar também
uma biografia que me justifique. Suspeito que a outros
sucede o mesmo quando comigo se cruzam.
Aquele que crê recordar-me e não pode
termina inventando anedotas comuns; uma noite
de tragos, papo e caminhadas pela praça.
Nos despedimos amavelmente,
com a certeza de haver encontrado
a forma correta de equivocar-nos.
(Horacio Fiebelkorn)[/vc_column_text][vc_row_inner][vc_column_inner][vc_column_text]
Que se caminhe então em direção ao porto, aos portos, ambos turísticos, ambos portos do engano. Puerto Madero da ostentação absurda, dos prédios de bancos chineses e do mar que não se vê. Que seja então o Caminito, a Boca fétida do Riachuelo, Tietê portenho que abraça as lindas casas pintadas de embarcações e que são visitadas hoje por turistas que remam vindo de todos os lados do mundo em busca de chaveiros em forma de obelisco e nacos de bifes de chorizo. E ainda assim sentar-se ao lado de Quinquela Martín imaginando o nascimento do Tango num Gardel com aquela boca cheia de batom. Caminhar e perder-se no porto. Porto de turistas. Buenos Aires é tudo menos porto. E isso se diz sobre ela:[/vc_column_text][/vc_column_inner][/vc_row_inner][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]
Porto adiante
[/vc_column_text][vc_column_text]Noite morna. Sensação prazerosa. Os sons abstratos das vias enchiam seus ouvidos eufóricos. Pensava no porto que via tão frequente… porto de cores impressionistas e homens sujos de braços molhados e brilhosos e cabelo crescido e úmido. Homens impassíveis à distância maravilhosa, ao céu entre os barcos, à paisagem combinada, ao solo recheado de objetos de lugares remotos como pedaços de mundo no melancólico coração de um mar…
Sim. Afundar-se uma noite nas ruas do porto. Caminhar, caminhar…
Sim. Sozinha. Sempre sozinha. Lenta, tão lentamente. E o ar estará suavizado, será um ar cosmopolita e o solo cheio de papéis de cigarros que alguma vez existiram, brancos e belos.
Sim. Seguirá caminhando. Afundar-se, escuridão, caminhar…
Sim. E uma estrela dará sua cor à âncora de prata que levava em seu peito. Jogar a âncora. Sim. Muito próximo a esse barco gigante de listras vermelhas e brancas e verdes… ir-se, e não voltar.
(Alejandra Pizarnik)
[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Dizem que Buenos Aires é uma cidade muito boa para a atividade de escrever, mas pouco importa. Já me falaram isso a respeito de Curitiba também, por conceber um tipo único e original de malucos, de doidos varridos. Talvez eu concorde. Esqueça o Borges, veja-se, por exemplo, o nosso Dalton, aquele que ousou apontar um erro e corrigir o mestre malbec.
Sem um porto e sem o mar, resta-nos caminhar, afundando-se na noite das ruas e dos poucos botecos abertos. Ir-se e não voltar, assoviando aquele tango soberbo.
extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
(Paulo Leminski)[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]
“Buenos Aires da brancura europeia de gente que não lê Martin Fierro” , a melhor descrição que já encontrei sobre essa cidade e não me causa estranheza que destaque aquilo que ela não é.