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Imagem: Ana Ferreira em cena na peça Primeiro Amor (Festival de Curitiba 2017)
[/vc_column_text][vc_column_text]No primeiro Interrogatório duplo da pequena história das entrevistas escritas desta R.Nott Magazine, trazemos as preciosas palavras de Letizia Russo & Marcelo Bourscheid, respectivamente a autora e o diretor de Primeiro Amor, peça que esteve em cartaz durante o Festival de Curitiba em 2017.
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“Que quem deseja fazer arte deveria matar aulas de arte para ler o Hamlet e viajar e amar e beber caipiras e nunca fazer o que o mestre mandar. Que desconfio que esta seja minha última entrevista.”
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Letizia Russo
[/vc_column_text][vc_column_text]♦ Como, onde, quando e por quê.
Minha história não é nada de especial, na verdade. Nada que merecia ser contado em uma peça de teatro. Nasci em Roma em 1980, terceira de quatro filhos. Com quatorze anos, minha mãe me levou para o teatro assistir o Adelchi, com Carmelo Bene, um dos maiores artistas italianos do século XX. Durante as três noites seguintes, não consegui dormir direito. Desejava muito ser tradutora de língua japonesa, mas o destino acho o melhor lugar para mim uma cadeira, uma mesa e teclas para bater, ou canetas para consumir. Vivi em Portugal durante alguns anos, e depois voltei para a Itália, na convicção que, por difícil que seja a situação, um artista deve tentar lutar onde nasceu. A primeira vez que viajei para o Brasil, convidada por Alvise Camozzi e Rachel Brumana, em um encontro público um senhor muito simpático falou para mim: Você tem mesmo o sotaque da terrinha!, pois falava português de Portugal.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Meus olhos ficaram vermelhos e tentei com todas minhas forças aprender o português do Brasil, mas nem sempre consigo escrever e falar direito. Faz três anos, vivo em uma pequena cidade da costa oriental da Itália, frente ao mar. Daqui a pouco serão vinte anos desde que comecei a escrever para teatro, e nesses anos muitas coisas mudaram, dentro e fora de mim. Mas, mesmo sabendo que daqui a mais ou menos cinco bilhões de anos este pequeno planeta, que é um entre bilhões, vai ser engolido pela sua estrela, continuo achando que a vida humana merece ser contada.
♦ O que é o Teatro na sua vida?
O teatro na minha vida é como a lança do poeta grego Arquíloco: é o que me alimenta, é o que me embriaga, é o que me faz descansar.
♦ Conte sobre o surgimento de Primo Amore.
Primeiro Amor surgiu em 2005. Um festival de teatro homossexual em Roma me encomendou uma peça. Na verdade, a direção do festival me deu limites bem apertados. Eles queriam uma história de homossexualidade entre vagabundos. Aceitei e desobedeci pois achei esse um pedido ideológico. Passei dois meses sem escrever nada. Na última semana antes do fim do prazo (os prazos foram durante muito tempo um pesadelo para mim), escrevi tudo, procurando a história mais simples do mundo, e tentando construir uma língua líquida, sem limites, filha da substância do pensamento humano, ou seja, a imagem, mais que a racionalidade, para fazer com que o ator que iria interpretar a peça, Paolo Zuccari, pudesse atuar as palavras como se fossem jazz.
♦ Conte sobre a sua experiência de ver a sua peça montada em outro continente. Como foi a sua relação com o diretor?
Ainda não assisti ao trabalho que Marcelo Bourscheid e Ana Ferreira fizeram no texto e espero, um dia, poder assistir. Mas já assisti a essa e a outras peças minhas em outros continentes, do extremo oeste ao extremo leste. É sempre muito emocionante, e estranho, claro, também. Tem situações em que o teatro consegue unir culturas e pontos de vista, e situações em que, apesar do grande sorriso amarelo na cara, meu corpo reage, e suo, suo muito. Mas é raro, felizmente.
♦ Heróis, ídolos e principais influências.
Não tenho heróis nem ídolos. E as influências, não sei, é muito difícil para mim falar sobre isso pois acho que as coisas que nos influenciam sejam invisíveis a nós próprios. Se eu falar, sei lá, de Shakespeare, ou de Tchekhov, ou dos tragediógrafos gregos, ou de qualquer outro, acho sempre que na verdade estou tentando me pôr ao lado de alguém. Não gosto da vontade de ser parecido. Acredito na originalidade, por pequena que seja. Quando escrevo, tento sempre deixar o intelecto fora da porta, e abrir a janela do porão, não sei se a metáfora é clara: o que quero dizer é que, pelo menos em uma primeira fase, o ato da escrita para mim é muito mais perto de um ato de conexão com as partes mais profundas do ser humano que quero contar do que uma reflexão intelectual sobre ideias ou conceitos. Acredito que a narração teatral, e qualquer narração, seja uma tentativa de dar sentido, perfeição ao grande caos que é a vida humana: não uma explicação, ou uma consolação, apenas um sentido, de marcha, digamos. E para fazer isso, eu preciso ser livre. Esquecer, sobretudo, de mim, do tempo, dos outros artistas, das outras formas. As ruas, as praças são o hábitats onde vivem meus heróis. Apenas procuro qual metáfora, qual arquétipo se esconde dentro dos seres humanos que encontro, e tento contá-los.
♦ Fale aqui sobre o que você sempre quis falar, com toda a liberdade, ou responda aquilo que nunca te perguntaram.
Quero apenas dizer uma coisa: sigo com muita dor e muita preocupação o desenvolvimento da situação no Brasil, que é o reflexo de dinâmicas que estão pondo em perigo o mundo inteiro. É preciso lutar, todos. É preciso não ter medo.[/vc_column_text][vc_text_separator title=”♦♦♦”][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]
Marcelo Bourscheid
[/vc_column_text][vc_column_text]♦ Como, onde, quando e por quê.
Comecei no teatro como espectador. Até hoje, desconfio que gosto mais de assistir ao teatro do que de fazê-lo. Foi mais ou menos durante a época do impeachment do Collor. Eu morava em Campinas e, numas das infinitas passeatas em que os colegas de escola matavam aula e pintavam a cara para salvar o país, um amigo me chamou para aproveitarmos o ócio cívico e fazermos um bate e volta para São Paulo. As caipirinhas da Augusta nos impediram de voltar antes do anoitecer, e sem saber a razão terminamos indo assistir a uma peça chamada “Um certo Hamlet”, de um tal de Abujamra, que meu amigo me explicou ser o Ravengar da novela. Como gostava do Ravengar, fui. Pelas caipiras que embotam o entendimento ou pela minha ignorância, nada entendi, principalmente o fato do Ravengar não estar em cena, sendo apenas o tal do diretor. Dia seguinte, peguei um exemplar do Hamlet na Biblioteca Pública e entendi menos ainda, parecendo-me um engodo o Ravengar ter colocado só mulheres em cena e não contar para o público que a peça não era assim. Esse não entendimento mostrou-me o tamanho da minha ignorância, da minha insignificância, e pensei que o teatro seria um bom caminho para tentar ser menos imbecil. O que não deu certo, obviamente.
♦ O que é o Teatro na sua vida?
O modo que encontrei de chatear os imbecis, trabalhar com amigos e arruinar a minha vida emocional e financeira.
♦ Conte sobre o surgimento de Primeiro Amor.
Há tempos venho trabalhando com escrita em processo. Projetos que têm seu início apenas pelo desejo dos participantes em trabalharem juntos, muitas vezes começando sem tema definido, sem um projeto estabelecido. Viciei neste modo de produção, a ponto de não conseguir me imaginar escrever um texto distante da sala de ensaio. Isso não é nenhuma apologia do processo colaborativo, mas a constatação do meu fracasso de voltar a escrever sozinho, sem colaboradores. Como “Primeiro Amor” tem um universo poético semelhante às minhas peças, resolvi emprestar este texto da Letizia Russo para continuar visitando minhas obsessões e tentar, num próximo trabalho, ser menos dependente da sala de ensaio.
♦ Conte sobre a sua experiência de montagem e encenação de uma peça contemporânea vinda de outro continente. Como foi a sua relação com a autora?
Conheci a Letizia Russo em uma oficina que ela ministrou durante sua passagem por Curitiba. Após este contato inicial, passei a ler os textos desta jovem dramaturga e percebi em suas obras uma poética que me interessava e dialogava muito com meus próprios textos. “Primo Amore” trabalha com uma temática que me interessa muito: as narrativas de retorno. Porém, o tema não é o que mais importa na obra, nem o enredo, mas a potência das palavras da autora em evocar a obsessão de um relacionamento traumático através de imagens incomuns. Um poema cênico que explora a tentativa de dizer o indizível. Como creio que o Teatro seja um desafio ao postulado de Wittgenstein segundo o qual “sobre o que não se pode falar, deve-se calar”, que o verbo cênico é uma palavra fraturada, traumática, profética, o texto de Letizia Russo pareceu adequado para continuar falando sobre este tema recorrente em meu trabalho: o amor. Já disseram que só sei falar sobre meu pai e sobre meus amores frustrados, e acho essa uma crítica justa. Nos últimos anos, tenho tentado deixar a alma paterna descansar e continuar falando sobre meu medo de amar. A vida é curta para mais de um tema, então continuo neste projeto de ser o Amado Batista da dramaturgia.
♦ Heróis, ídolos e principais influências.
Não tenho heróis e acho que o culto a heróis nos imbeciliza, como nos mostra a história recente da ascensão e queda dos heróis do povo brasileiro. Meu único ídolo vivo é Alejandro Jodorowsky, meu mestre espiritual e artístico. Sobre influências, creio que Jon Fosse, Jean-Luc Lagarce, Martin Crimp e Harold Pinter foram os dramaturgos cuja leitura me causou maior impacto e com quem tento dialogar constantemente. Mas atualmente quem mais me influencia são os meus parceiros do Projeto Teatro de Segunda, o Eduardo Ramos e o Don Correa, e minha companheira de arte, cervejas & resistência, a Ana Ferreira, pessoas com quem tenho a sorte de aprender diariamente.
♦ Fale aqui sobre o que você sempre quis falar, com toda a liberdade, ou responda aquilo que nunca te perguntaram.
Como minha opinião é totalmente irrelevante, eu queria dizer que Curitiba é uma cidade insignificante e que deveríamos aprender com a história recente do movimento teatral de Belo Horizonte e parar de intriguinhas & panelinhas & fofoquinhas & entendermos que comparados a Ésquilo, Pinter e Kantor todos nós somos o pum do mosquito pousado no cocô do cavalo do bandido. Que a gente deveria parar de puxar o saco dos críticos para garantir um lugar de destaque no jornaleco golpista da segunda-feira pós-festival. Que o Gralha Azul é um desserviço à Arte. Que os artistas locais deveriam parar de se achar, porque quem se acha não se perde logo não há desvio logo não há arte. Que a Grande Festa do Teatro Curitibano é uma cafonice sem fim. Que com a verba do Festival de Curitiba daria pra fazer duas Mostras Internacionais de Teatro de São Paulo logo… Que a súcia que acompanhou a Regina Duarte em sua vergonhosa visita ao governador do 29 de abril deveria passar uns 10 anos em retiro espiritual em Antonina rezando todo santo dia para que o Wilson Rio Appa ilumine essas almas sem luz. Que eu espero que os editores da R.Nott percebam que sou só um sujeito rancoroso e tenham o bom senso de não publicar esta entrevista senão eu jamais serei convidado para as festinhas da classe. Que eu amo meus amigos e inimigos do teatro, mas odeio a “classe teatral” e todas as classes, pois classe me lembra aula e só estou no teatro porque matei aula para assistir ao Abujamra, que terminava seu “Provocações” dizendo aos seus entrevistados “diga o que sempre quis falar, enforque-se nas cordas da liberdade”, como vocês fizeram. Que quem deseja fazer arte deveria matar aulas de arte para ler o Hamlet e viajar e amar e beber caipiras e nunca fazer o que o mestre mandar. Que desconfio que esta seja minha última entrevista.
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