Literatura

Cinco poetas americanos

“Pra onde vamos, Walt Whitman? As portas fecham numa hora. Pra onde a sua barba aponta nesta noite?”

Para fechar o ano nesta caríssima coluna de literatura, apresento cinco traduções de poetas americanos modernos, sendo um deles Walt Whitman, no trecho final de Song of myself, e mais quatro autores do séc. XX que desenrolam a esteira inaugurada pelo velho bardo novaiorquino. Para os que não conhecem nenhum desses poetas, fica aí uma amostra e uma sugestão de leitura futura.

Para os que querem encontrar um fio condutor nessa seleção, pensemos sobre como cada um deles trata e enfrenta o seu próprio mundo moderno. Podemos perceber que tal enfrentamento ainda nos soará estranhamente familiar em textos de diferentes épocas, numa busca por restos de poesia dentro do rolo compressor do mundo em constante progresso.

Seguimos, afinal, dançando pelados, grotescos e sozinhos em frente ao espelho do quarto dos fundos.

 

***

 

Além disso, incluí junto a cada poema um link para leituras feitas pelos próprios autores – exceto para o texto de Walt Whitman, que está gravado pelo professor do departamento de inglês da Universidade da Pensilvânia, John Richetti. Destaco a gravação de Cid Corman para It isnt for want, maravilhosa.

A pintura acima, chamada Hotel (1921), é de Charles Demuth, aquarelista estadunidense e amigo íntimo de William Carlos Williams.


Audio: https://media.sas.upenn.edu/pennsound/authors/Williams-WC/05_Emerson-Recording_08-50/Williams-WC_11_Danse-Russe_prod-Emerson_08-50.mp3

 

Danse Russe

(William Carlos Williams)


If I when my wife is sleeping

and the baby and Kathleen

are sleeping

and the sun is a flame-white disc

in silken mists

above shining trees, —

if I in my north room

dance naked, grotesquely

before my mirror

waving my shirt round my head

and singing softly to myself:

“I am lonely, lonely.

I was born to be lonely,

I am best so!”

If I admire my arms, my face,

my shoulders, flanks, buttocks

against the yellow drawn shades, —

 

Who shall say I am not

the happy genius of my household?

 

Danse Russe

 

Se eu quando minha esposa dorme

e o bebê e Caroline

dormem

e o sol é um disco em chamas brancas

em névoas sedas

sobre ilustres árvores, –

se eu no meu quarto dos fundos

dançar pelado e grotesco

diante do espelho

tremulando a camisa sobre a cabeça

cantando baixinho pra mim mesmo:

“Eu sou sozinho, sozinho.

Nasci pra ser sozinho,

E quão melhor assim!”

Se eu admirar meu braços, meu rosto,

meus ombros, lados, bunda

recortados em sombras amarelas, –

 

Quem dirá que não sou

o alegre gênio do meu lar?

 

 

Audio: https://media.sas.upenn.edu/pennsound/authors/Ginsberg/Chicago-1959/Ginsberg-Allen_04_Supermarket-in-California_Big-Table-Chicago-Reading_1959.mp3

 

A supermarket in California

(Allen Ginsberg)


What thoughts I have of you tonight Walt Whitman, for I walked down the sidestreets under the trees with a headache self-conscious looking at the full moon.

         In my hungry fatigue, and shopping for images, I went into the neon fruit supermarket, dreaming of your enumerations!

         What peaches and what penumbras! Whole families shopping at night! Aisles full of husbands! Wives in the avocados, babies in the tomatoes!—and you, Garcia Lorca, what were you doing down by the watermelons?

 

         I saw you, Walt Whitman, childless, lonely old grubber, poking among the meats in the refrigerator and eyeing the grocery boys.

         I heard you asking questions of each: Who killed the pork chops? What price bananas? Are you my Angel?

         I wandered in and out of the brilliant stacks of cans following you, and followed in my imagination by the store detective.

         We strode down the open corridors together in our solitary fancy tasting artichokes, possessing every frozen delicacy, and never passing the cashier.

 

         Where are we going, Walt Whitman? The doors close in an hour. Which way does your beard point tonight?

         (I touch your book and dream of our odyssey in the supermarket and feel absurd.)

         Will we walk all night through solitary streets? The trees add shade to shade, lights out in the houses, we’ll both be lonely.

         Will we stroll dreaming of the lost America of love past blue automobiles in driveways, home to our silent cottage?

         Ah, dear father, graybeard, lonely old courage-teacher, what America did you have when Charon quit poling his ferry and you got out on a smoking bank and stood watching the boat disappear on the black waters of Lethe?

 

Berkeley, 1955

Supermercado na Califórnia

 

Que pensamentos tenho de você essa noite Walt Whitman, pois eu desci as vielas sob as árvores com enxaquecas constrangido fitando a lua cheia.

Em minha faminta estafa, consumindo imagens, entrei na feira neon, fantasiando em suas enumerações!

Que pêssegos e que penumbras! Famílias inteiras comprando à noite! Corredores cheios de maridos! Esposas nos abacates, bebês nos tomates! – e você, García Lorca, que faz entre as melancias?

 

Te vi, Walt Whitman, estéril, velha e singela enxada, cutucando as carnes na geladeira e contemplando os moços da feira.

Te escutei perguntando coisas: Quem foi que matou as costeletas? Quanto bananas? Serias tu meu Anjo?

Vaguei entre as brilhantes pilhas de latas te seguindo, quando era seguido em minha imaginação pelo segurança.

Andamos juntos pelos corredores largos provando sós e chiquemente as alcachofras, possuindo cada lisonja congelada, nunca passando pelo caixa.

 

Pra onde vamos, Walt Whitman? As portas fecham numa hora. Pra onde a sua barba aponta nesta noite?

(eu toco seu livro e sonho com a nossa odisseia no mercado e sinto-me absurdo.)

Andaremos por toda a noite entre ruas solitárias? As árvores sombreiam as sombras, as casas se apagam, seremos ambos solitários.

Passearemos pensando nessa amorosa América perdida dos automóveis celestes na garagem, lar da nossa calada cabana?

Ah, pai querido, cinzento, velho e solitário incitador, que América você teve quando Caronte deixou de empurrar sua balsa e você saiu com seu banco e quedou-se olhando o barco a desvanecer nas negras águas do Lete?

 

Berkeley, 1955


Audio: https://media.sas.upenn.edu/pennsound/authors/Niedecker/Niedecker-Lorine_08_Foreclosure_Factory-School-Archive_11-1970.mp3

 

Foreclosure

(Lorine Niedecker)


Tell em to take my bare walls down

my cement abutments

their parties thereof and clause of claws

 

Leave me the land

Scratch out: the land

 

May prose and property both die out

and leave me peace

 

Hipoteca

 

Diga a eles que arreganhem minhas paredes

os meus pilares de concreto

suas partes de togas e as coisas das coisas

 

Deixem-me a terra

Apague: a terra

 

Que morram tanto a prosa e o patrimônio

e deixem-me paz


Audio: https://media.sas.upenn.edu/pennsound/authors/Corman/Corman-Cid_Poem-beginning-it-isnt-for-want_KWH_11-19-01.mp3

 

It isnt for want

(Cid Corman)

 

It isnt for want

of something to say —

something to tell you —

 

something you should know —

but to detain you —

keep you from going —

 

feeling myself here

as long as you are —

as long as you are.

 

Não é por querer

 

Não é por querer

dizer algo –

te falar algo –

 

te informar algo –

mas te deter –

te manter por perto –

 

sentindo-me aqui

enquanto você estiver –

enquanto você estiver.


Audio: https://media.sas.upenn.edu/pennsound/authors/Richetti/Whitman-SoM/MP3/Whitman-SoM-Richetti-canto52.mp3

 

Song of Myself

52

(Walt Whitman)

 

 

I depart as air, I shake my white locks at the runaway sun,

I effuse my flesh in eddies, and drift it in lacy jags.

 

I bequeath myself to the dirt to grow from the grass I love,

If you want me again look for me under your boot-soles.

 

You will hardly know who I am or what I mean,

But I shall be good health to you nevertheless,

And filter and fibre your blood.

 

Failing to fetch me at first keep encouraged,

Missing me one place search another,

I stop somewhere waiting for you.

 

Song of Myself

52 (final)

 

Como ar eu parto, agito meus cachos brancos aos sol fugidio,

Espalho minha carne em furacões, e flutuo em finas rendas.

 

Lego-me à terra pra crescer da grama que amo tanto,

Se me queres de novo, busca debaixo das botas.

 

Mal saberás quem sou, mal saberás que eu digo,

E ainda assim serei pra ti vitalidade,

E filtro e a fibra em teu sangue.

 

Se não me alcanças, mantém a coragem,

Perdendo-me, busca de novo,

Eu por aí paro – te espero.

Vinicius F. Barth
Doutor em Estudos Literários pela UFPR. Tradutor das Argonáuticas de Apolônio de Rodes. Escritor e ilustrador. Autor do livro de contos 'Razões do agir de um bicho humano', (Confraria do Vento, 2015) e do livro de poemas e ilustrações '92 Receitas Para o Mesmo Molho Vinagrete' (Contravento Editorial, 2019). Ilustrador de Pripyat (Contravento Editorial, 2019). Estudante de saxofone.

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1 Comment

  1. Que bálsamo! Obrigado.

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