Visuais

A arte nada faz acontecer

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“O que fica explícito nesse veredicto é que a poesia e as artes em geral nada podem fazer, seja no sentido de impedir ou de corrigir, seja contra ou a favor dos problemas em contingência.”

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           Em 8 de outubro de 1939, o poeta anglo-americano Wystan Hugh Auden (1907 – 1973) escreveu sobre a morte do poeta, dramaturgo e místico inglês, William Butler Yeats (1865 – 1939), onde alude a impotência das obras de arte frente ao um mundo que exige mudanças. Talvez, supõe ele, as obras de arte só sirvam a si mesmas.

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[…]

Foste tonto como nós; a tudo sobreviveu o teu talento;
À paróquia das ricas senhoras, à decadência física,
A ti mesmo; a louca Irlanda feriu-te para a poesia.
Agora a Irlanda tem ainda a sua loucura, a sua temperatura,
Porque a poesia não faz acontecer nada: sobrevive
No vale do seu dizer, onde os executivos
Não gostariam nunca de lavrar; corre para Sul
Das herdades isoladas e das mágoas agitadas,
Rudes cidades em que acreditamos e morremos; sobrevive
Uma forma de acontecer, uma boca¹. […] (AUDEN, 2003, s/p)

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            Ninguém, suponho, acreditaria que a lírica de Auden poderia modificar o clima e a saúde mental dos irlandeses. Isso parece dar a Auden o seu paradigma de impotência artística. Quiçá, cumpriu-se uma estratégia para desencorajar a esperança de que a arte poderia ser proveniente de modificações significantes na sociedade, alimentada de uma quantidade de versos que podem fazer, de fato, algo acontecer. Embora a arte possa ser entendida como algo recessivo à medida do gosto, sua ineficácia não traz, necessariamente, um descrédito a si mesma.

 

            Para darmos força ao embricamento aqui referido, eu os convido, em proveito do conteúdo, a um devaneio. Que estejam atentos ao livro de Arthur Danto, O descredenciamento filosófico da arte (2014), ao capítulo primeiro. Uma passagem inicial do texto do autor, algo perturbadora, desenvolve a ideia, uma tese empírica, relativa a teorias indexáveis que imbuem a interpretação das obras de arte ao condicionamento. Poder-se-ia dizer que a poesia e a arte em geral não podem fazer algum efeito sobre as coisas do mundo. Talvez por ironia, ou mesmo por digressões, a arte, desta forma, apresenta alguma periculosidade inerente. Contudo, Danto evoca um trecho de Auden, extraído de um manuscrito, no qual o poeta trabalhava na época de seu casamento com Chester Kallman (1921 – 1975):

[/vc_column_text][vc_row_inner][vc_column_inner width=”1/4″][/vc_column_inner][vc_column_inner width=”3/4″][vc_column_text]”Os artistas se entenderiam melhor num tempo de crise como o presente se os últimos percebessem que a história política do mundo teria sido a mesma se nem ao menos um poema tivesse sido escrito, nem um quadro pintado, nem um compasso de música composto. (AUDEN apud DANTO, 2014, p. 36).[/vc_column_text][/vc_column_inner][/vc_row_inner][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]

            Por apreço ou por estima, tal afirmação seria contestada por muitos. E contestá-la parece apenas prescrever uma atitude de salvaguardar algo do orgulho ou do prestígio feridos pela afirmação do poeta. O que fica explícito nesse veredicto é que a poesia e as artes em geral nada podem fazer, seja no sentido de impedir ou de corrigir, seja contra ou a favor dos problemas em contingência. E isso se dá justamente porque não foram elas que puseram as coisas do mundo em movimento. Resta apenas agarrar-se à crença (faltando-me um melhor termo) de que a arte é tão útil quando um peso de porta no oceano. Talvez por esta caraterística a arte seja tantas vezes sujeita à supressão ou controle, como Danto costuma afirmar em seus textos.

 

            A arte não possui autoridade prática, já que é um instrumento de reflexão. Isto não é uma regra. No entanto, vemos que a arte que não seguiu padrões de alguns regimes autoritários foi perseguida. Nesse sentido, tudo que estiver fora dessa gramática será um corpo estranho e, consequentemente, perseguido, ou deixado de lado. Pois sempre existiu uma arte ‘oficial’, oposta a uma arte que não é esperada, não-oficial, contestadora. Uma vez posta essa regra, a exclusão se sobressai.

 

            A arte está a serviço do estatuto.

 

            Pois bem. Sabemos que Adolf Hitler (1889 – 1945) era um grande entusiasta da música de Richard Wagner (1813 – 1883). Sabemos também que era um frequentador assíduo do festival de música de Bayreuth, no norte da Baviera, Alemanha, onde viveu Wagner de 1872 até sua morte. O local abriga a Bayreuth Festspielhaus, uma casa de ópera especialmente construída para a execução das obras do compositor alemão. “O jovem Hitler sempre esteve bem à frente em toda apresentação de Wagner que havia”, diz a historiadora Brigitte Hamann, autora do livro Winifred Wagner e a Bayreuth de Hitler (HAMANN APUD RABITZ, 2008, s/p).

 

            Com efeito, lembramos que, mesmo antes de Hitler tornar-se ditador, já havia um estreito contato entre ele e a família e os herdeiros de Wagner. As óperas sempre estiveram presentes, mais do que qualquer outro evento organizado pelo governo nazista, que se utilizava do espetáculo à vontade, para fins políticos e para a propagação da ideologia nazista. (RABITZ, 2008)

 

            Na noite de 25 de julho de 1936, Hitler esteve em Bayreuth para prestigiar aquela edição do festival. Entre uma cena e outra da ópera Siegfried – terceira parte das quatro que compõem a tetralogia O anel dos Nibelungos – Hitler decidiu acolher o pedido solicitado pelo general Francisco Franco Bahamonde para eliminar o governo republicano esquerdista da frente popular espanhola. Contribuiu com uma dezena de aviões de transporte e armas. A operação ficou conhecida como ‘fogo mágico’. Os nazistas possibilitaram o golpe militar que levou a Espanha à guerra civil. A legião condor, unidade integrada, foi a responsável pelo bombardeio. (SHELLING, S/DATA)

 

            Em 26 de abril de 1937, numa segunda-feira, dia de feira livre na pequena cidade da Biscaia, moradores bascos testemunharam uma incursão aérea da legião condor. Aviões despejaram o inferno na cidade, de aproximadamente sete mil habitantes e sem defesas aéreas. O bombardeio iniciou-se às 16h45, e era intercalado por rajadas de metralhadoras para eliminar os sobreviventes. Aproximadamente 1.700 pessoas morreram e 900 ficaram feridas. O foco estava nos civis. As três fábricas de armamentos ficaram intactas e os franquistas puderam usá-las meses depois do ataque terrorista. (SHELLING, S/ DATA)

 

            Em 1937, Pablo Picasso (1881 – 1973) realizou, por meio de incumbência do governo da república espanhola, no intuito de representar a Espanha na Exposição Internacional de Arte e Técnicas de Paris, a notória obra: Guernica. O Governo tinha a intenção de que o evento servisse de apoio à república e como denúncia do que sofreram os espanhóis sob o regime. Uma vez concluída, a obra percorreu, numa exposição itinerante, países como a Noruega, Dinamarca, Suécia e Londres.

 

            A tela é uma representação do bombardeio sofrido pelos cidadãos da cidade espanhola de Guernica em 26 de abril de 1937 por aviões alemães, ataque apoiado pelo ditador Francisco Franco. Morando em Paris, Picasso soube dos fatos por meio de jornais. A fotografia com que o artista teve contato foi feita durante a noite, quando a cidade ainda encontrava-se em chamas. É perceptível a inspiração do artista para a retratação monocromática dos fatos. Poderíamos dizer que o ataque à cidade basca fez o quadro Guernica colocar o pintor não no papel de quem sustenta pinceis e tintas, mas de quem está diretamente sob o despencar das bombas. Picasso assumia a autoria do quadro perante os alemães. Era uma demonstração que evidenciava até onde estariam dispostos a irem. (READ, 2001)

 

            A pintura, disse o artista espanhol: “é um instrumento de guerra para ataque e defesa contra um inimigo”, não se valendo como um instrumento de decoração. (PICASSO apud READ, 2001 160). Esse inimigo, provavelmente, é o sujeito que explora outro, motivado por interesses torpes, sendo aquele que inviabiliza as conectividades que a obra pode gerar.       

   

            Guernica foi usada para angariar ajuda humanitária para a guerra na Espanha. Mas aqueles que pagaram para ter o privilégio de arquivá-la apenas a usaram como espelho para refletir atitudes que já estavam em vigor. A pintura de Picasso promoveu-se em meio aos corpos eviscerados dos aldeões bascos e dos animais, bem como o defunto de Yeats no poema de Auden. Além disso, sua harmoniosa composição em preto e cinza era compatível com as salas de exposições sofisticadas onde pessoas sensíveis poderiam contemplar a obra. A arte não tinha feito acontecer nada de relevante; era um relicário, uma maneira de abrigar memórias que se apagam. E o mais aterrador é que constitui-se uma prática ritualística que apregoa uma nítida função ao confessar a extrema limitação de poder fazer algo acontecer. (DANTO, 2004)

 

            Mesmo aparentando um engessamento, a arte permite sempre reflexões, abrindo espaço para a perplexidade, a inquietação e o excepcional. A obra de Picasso havia se convertido em um símbolo contra ditaduras e a opressão. E poderia ser usada e apropriada por todos que cultivavam as crenças de que uma obra poderia ser sujeito de mudança. Os anos que se seguiram, frente aos artistas que se apropriaram da imagem da obra, aprofundaram a relação do símbolo: uma série de protestos contra a guerra do Vietnam trazia a imagem na tentativa de prevenir o que ocorreria se a guerra fosse firmada.  Que pensar da reprodução da Guernica em tapeçaria circulada por cortinas azuis, que decorava a sala de conferência onde Colin Powell (1937 -) revelaria que os EUA atacariam o Iraque, apoiado na cínica afirmação de quebra de protocolo de segurança? Subsiste a pergunta: de que tamanho e qual seria a cor da cortina que poderia esconder a carnificina que os estadunidenses provocariam?

 

            Entre as diversas formar de apropriar-se da imagem, sobressai-se o pixo realizado em 1974 por um membro do AWC, Tony Shafrazi, promovendo uma ação em protesto ao perdão que o presidente Nixon (1913 – 1994) havia concedido a William Calley pelo massacre em My Lai, Vietnam. Calley havia sido condenado à prisão perpétua, mas cumpriu apenas três anos e o resto em prisão domiciliar, até que finalmente foi concedido o perdão. Em consequência disso, Tony Shafrazi pixou sobre a Guernica: Kill lies all (em um tipo de resposta à frase do Finnegans Wake, de James Joyce: “Lies. All lies.”) – justamente na parte central do quadro, na pelagem do cavalo mutilado, retratada com pequenos traços verticais. No final das contas a pintura não foi danificada, graças às equivocadas camadas de cera que revestiam a obra na época – “equivocadas” porque tornavam a obra quebradiça, e a fragilidade gerada foi usada para alimentar a custódia que impedia a obra de voltar para a Espanha, sem movê-la, assim, do MOMA, em Nova Iorque.

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¹ – […] You were silly like us; your gift survived it all: / The parish of rich women, physical decay, / Yourself. Mad Ireland hurt you into poetry. / Now Ireland has her madness and her weather still, / For poetry makes nothing happen: it survives / In the valley of its making where executives / Would never want to tamper, flows on south / From ranches of isolation and the busy griefs, / Raw towns that we believe and die in; it survives, /A way of happening, a mouth. […][/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

Marlon Anjos
Mestre em artes visuais. Neoísta.

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