Literatura

Nada podemos afirmar que não seja duvidoso

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Emerson Cerdas, colunista convidado para falar de Literatura nesta primeira edição de 2016, nos apresenta o tema da Biografia, e em que medida ela costuma se enrolar com a História e com a própria Ficção. Não deixe de ler, te garantimos que tudo nessa coluna é verdade!

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“A biografia, assim, passou a ser um gênero em que a ficção tinha um papel preponderante, porque, quanto menos conhecida era a vida do indivíduo, mais o biógrafo poderia acrescentar detalhes para justificar seu elogio ou censura.”

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            O historiador Políbio, no livro X.21 das Histórias, comenta que escreveu sobre o general grego Filopémen uma biografia encomiástica, resumida e exagerada sobre seu caráter e suas façanhas. Este material, diz ele, não estará presente nas Histórias, pois como esta é uma narrativa historiográfica, comentários sobre caráter devem aparecer apenas parcialmente. Biografia e história são gêneros que, comumente, são colocados como especulares. Ambos tratam da presença do homem na história e como suas ações deixaram marcas no tempo. Políbio, no entanto, deixa claro que, embora tenham um tema em comum, a vida de Filopémen, cada gênero trabalha o passado de uma forma específica.

 

            Para filósofa alemã Hanna Arendt, o tema da história, ao menos da história narrativa que nasce com os gregos, é o evento que é percebido como extraordinário, fora do comum. A guerra que Heródoto quer narrar é a maior que já existiu, superior à de Troia; a de Tucídides, é maior do que a de Heródoto e essa amplificação da guerra e do assunto da narrativa prossegue por toda historiografia antiga. No entanto, se a mão direita do rei persa Artaxerxes II não fosse extraordinária, mais comprida do que a esquerda, porque Plutarco perderia seu tempo falando dela na biografia dedicada a esse rei? Ou falaria que o político Alcibíades se recusava a tocar flauta porque julgava o instrumento indigno de um homem livre? A biografia fala da vida privada do indivíduo ilustre, mas aquilo que é diferente, excêntrico e, por isso, qualifica e caracteriza aquele indivíduo como único. Se alguém fosse escrever uma biografia sobre mim, com certeza não falaria sobre o tamanho de minhas mãos (sim, depois de ler em Plutarco, não resisti à tentação de sobrepô-las para medi-las). O tamanho das minhas mãos é comum, mas a de Artaxerxes II era suficientemente comprida e única, o que justificava um comentário.

 

            Os biógrafos na Antiguidade buscavam compreender o caráter do homem ilustre, e compreender o caráter do homem é também entender as manifestações espirituais que o conduziam à grandeza na esfera pública. É agradável e interessante saber por Suetônio que Júlio César, ao ver a escultura de Alexandre Magno junto ao templo de Hércules, chorou por perceber a sua própria pequenez. Ao mesmo tempo, a narração da impressão causada pela estátua em César diz muito do caráter do futuro imperador romano, pois é a partir desse fato que ele inicia suas articulações políticas em vista de grandes feitos que o tornassem célebre. Quantos homens antes passaram por essa estátua, tiveram semelhante sensação de fracasso, mas, dando de ombros, retornaram para suas casas e continuaram sua vida (que, aliás, nenhum biógrafo quis contar)! O caráter de emulação e a busca pela grandeza faz César, como um guerreiro homérico, sentir vergonha de não ter produzido nenhum grande feito, enquanto Alexandre, com a mesma idade, já conquistara meio mundo. Essa anedota revela o caráter de César, ao mesmo tempo que justifica sua atuação política e militar (material da historiografia), o singulariza frente a todos outros homens.

 

            Os biografados não eram homens comuns, mas reis, líderes políticos, grandes militares, poetas, filósofos, etc. O elogio ou a censura do caráter do biografado era, assim, uma forma de justificar a grandeza ou a vilania das suas ações. A biografia, então, parece complementar a história. Cria com a narrativa uma forma do leitor perceber, através das anedotas, as singularidades do homem que, na vida pública, era diferenciado. 

 

            Temos que admitir, no entanto, que há um sabor agradável nas anedotas. Casos de amor, ditos espirituosos, idiossincrasias e picuinhas da vida privada das personalidades sempre foram atrativas, e a proliferação de revistas, de programas de televisão e de sites sobre famosos hoje em dia mostra bem o quanto as pessoas se interessam por esse tipo de assunto. Quem lembra de qualquer outro feito do Príncipe Charles que não ter casado com Lady Diana e ter tido um caso extraconjugal com Camila Parker? Mas, se hoje as trocentas câmeras nos vigiam e qualquer “deslize” é rapidamente tornada pública, como o escritor antigo podia encontrar esse tipo de informação a respeito dos homens ilustres do passado?

 

            A vida particular não era registrada em documentos oficiais e muito do que se falava a respeito das personalidades eram deduzidas das próprias obras (quando poetas e prosadores) ou de anedotas que circulavam na tradição oral. O público da biografia queria informações sobre a comédia da vida privada que revelassem o caráter do herói, mas, como observa o estudioso italiano Arnaldo Momigliano, essas informações são menos fáceis de ser documentadas, e se os biógrafos quisessem manter a atenção de seu público, deveriam muitas vezes recorrer à ficção.

 

            A biografia, assim, passou a ser um gênero em que a ficção tinha um papel preponderante, porque, quanto menos conhecida era a vida do indivíduo, mais o biógrafo poderia acrescentar detalhes para justificar seu elogio ou censura. Muitos estudiosos pensam inclusive que foi a partir dessa sobreposição da ficção sobre as vidas de personagens históricos que nasceu o romance na Antiguidade nos séculos II ou I a.C. A Ciropedia de Xenofonte, nesse sentido, é um exemplo interessante como precursora desse fenômeno. Obra do século IV a.C., ela narra a vida de Ciro, o velho, que fora imperador persa. Embora Xenofonte tenha vivido um período curto da sua vida na Pérsia e tenha, provavelmente, conhecido lendas a respeito de Ciro, a vida que ele apresenta traz muitos elementos que podemos chamar ficcionais: anedotas da infância, conversas íntimas com seu avô, o relacionamento com outras personagens cuja historicidade é nula. Essa ficção da vida privada permite que Xenofonte demonstre o emblemático caráter de Ciro, que o tornou digno de tanta admiração.

   

            A biografia, assim, complementa a história, se serve do material que aquela abdica, nem que, para isso, precise inventar um pouquinho.

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Autor: Emerson Cerdas

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Vinicius F. Barth
Doutor em Estudos Literários pela UFPR. Tradutor das Argonáuticas de Apolônio de Rodes. Escritor e ilustrador. Autor do livro de contos 'Razões do agir de um bicho humano', (Confraria do Vento, 2015) e do livro de poemas e ilustrações '92 Receitas Para o Mesmo Molho Vinagrete' (Contravento Editorial, 2019). Ilustrador de Pripyat (Contravento Editorial, 2019). Estudante de saxofone.

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