A statue of Rigas Feraios, a Greek writer and revolutionary who died in 1798, is painted with the sign of anarchy outside the Athens University on December 12, 2008. The police killing of a 15-year-old a week ago has set off widespread riots and led to clashes between protesters and police. AFP PHOTO/ Aris Messinis (Photo credit should read ARIS MESSINIS/AFP/Getty Images)
Ruído

Punk rock da academia e a anarquia (des)controlada

O que é o punk dentro do ambiente acadêmico? Juliano Samways aborda esse incrível tema e pensa sobre como a anarquia pode sobreviver dentro da máquina do estado e desse ambiente extremamente controlado da burocracia universitária.


 

“Anarquia controlada? Não existe aí um antagonismo explícito? Como podemos controlar o que é por natureza descontrolado?”

 

          Musicalmente falando, o punk rock teve data, local e identidade de nascimento. Surgiu em 1974, no Queens, arquitetado por Jeffrey Ross Hyman, John William Cummings, Tom Erdélyi, Douglas Glen Colvin: Joey, Johnny, Tommy e Dee Dee, os Ramones. Antropologicamente falando, eclodiu em Londres, no final dos anos 70, em meio à crise econômica, com uma roupagem anarquista, anti-capital. Uma verve urbana vestida e articulada por velhos fãs dos Ramones, estes que passaram por lá em uma turnê revolucionária em 1976. O mesmo fenômeno ocorre depois, nos EUA, e mesmo que nessa época nunca acontecesse o devido reconhecimento, por onde os Ramones passavam juntavam-se jovens que pouco dominavam seus instrumentos, mas que, futuramente, formariam uma banda de rock; “do it yourself”, esse era o lema. Uma mistura de movimento social, grito da periferia, inclusão musical. Esses eram os primeiros acordes.

 

          Simplicidade, visceralidade, juventude, atitude e uma anarquia levemente controlada tornam-se requisitos para fazer o punk rock. No Brasil, não muito tempo depois, o punk rock também fruiu. Primeiramente em São Paulo, no grande ABC paulista, depois para o resto do Brasil. Como em outros lugares do mundo, foi beatificado pela arte, mas também sacralizado pelo capital.

 

          Algo, no entanto, chama a atenção daquele que debruça um olhar curioso acerca do punk rock. Ultimamente grandes ícones punk rockers não habitam somente o palco, mas sim cátedras de grandes universidades pelo mundo.

 

          Greg Graffin foi, sem dúvida, um daqueles garotos que formou uma banda punk por influência de algum disco dos Ramones. Tornou-se frontman do Bad Religion, uma das mais famosas bandas de punk rock na América. Junto aos 30 anos de banda, integrou uma vida universitária paralela às turnês, que culmina hoje em lições de antropologia pela UCLA. Anarchy Evolution: Faith, Science, and Bad Religion in a World Without God, é uma de suas mais conhecidas obras.

 

          A Revolução Cubana e a Questão Nacional: 1868-1963 é obra de José Rodrigues Mao Jr., mais conhecido como Mao dos Garotos Podres, banda de punk rock do ABC. Este referido texto é a tese de Doutoramento de Mao, defendida na USP. Mao atualmente leciona no Instituto Federal de São Paulo.

 

          Poderíamos citar outros exemplos, como Dexter Holland, vocalista do Offspring, mestre em Biologia Molecular. E bastaria pesquisar para encontrar outros.

 

          O que mais intriga, na verdade, é como a transgressão natural do punk se enquadra no mundo da produção acadêmica, extremamente condicionada aos ideais de pesquisa em massa, produção de artigos, ordem e disciplina das lições, leituras, rigidez das Fundações de Pesquisa e seus sistemas de ranqueamento e avaliações.

 

          A anarquia controlada deve ajudar neste processo.

 

          Diógenes de Sinope, ou Diógenes o cínico, supostamente foi o primeiro punk da história ao anarquizar nas ruas da Grécia Antiga. São múltiplas as anedotas atribuídas a ele, como a de que morava dentro de um barril, negando inclusive uma boa morada oferecida por Alexandre Magno. Exerceu, Diógenes, a anarquia como sua única posse, seu sustento intelectual.

 

          Essa anarquia como autonomia da liberdade de si é o que motiva o punk da universidade. O comprometimento com uma ideia, com uma causa, qualquer que seja, nos faz pensar tal como Diógenes, e nos faz usar essa anarquia controlada para desgovernar, mesmo que por alguns instantes, a máquina burocrática do cotidiano da produção.

 

          Anarquia controlada? Não existe aí um antagonismo explícito? Como podemos controlar o que é por natureza descontrolado?

 

          O controle é o aparente, é o que nos faz levantar da cama pela manhã, pagar os boletos em dia, dar uma xingadinha no governo, mas é também o que nos faz juntar pelo menos três acordes, dar uma ordem exterior ao interno anárquico, que ferve em revolta na calmaria do Estado, estático.

 

          O pensamento – é inegável, meus amigos – vive uma espécie de anarquia ontológica, ele é a pura transformação do ser, que hora ou outra damos vazão pela burocracia da palavra, fixamos nossas ideias em várias gavetinhas, arquivos físicos que protocolam nossos instintos. O punk é uma dessas vias que dão vazão a esses impulsos primitivos de liberdade.

 

          Se a mudança é o combustível do pensamento, a atitude punk cristaliza isso em algumas obras. Por isso dizemos que a alma é anárquica e não burocrática, disso os Ramones bem sabiam, lá pelos idos de 74. Essa anarquia ontológica da alma em seu descontrole governado deve estar também na academia; pelo menos deveria!

 

          A anarco-ontologia-do-pensamento, para escrever como um acadêmico contemporâneo, deveria ter algum manifesto, alguma Semana da Anarquia Acadêmica Moderna, mas sempre vai existir algum Diógenes contemporâneo para dar uma mijadinha em praça pública e rir de todos.

Juliano Samways
Professor de filosofia, autor, músico, estudante, ex-enxadrista, ex-filatélico.

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