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Imagem: Lavagem do ouro, Minas Gerais, 1880 – Foto de Marc Ferrez-Acervo Instituto Moreira Salles
[/vc_column_text][vc_column_text]O misticismo de Milton Nascimento em uma Minas Gerais dos anos 60 e a profundidade dos abismos de Pascal, debatidos e refletidos por Juliano Samways, o mago da música desta R.Nott Magazine.
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“A música é esse campo imanente em constante criação de espaços com infindáveis revelações, que nem sempre possui como pano de fundo alguma renovação tecnológica ou laboral, mas pode ser sim uma simples e profunda arte de somente ser algo que já se é.”
[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Há pouco tempo me encantei muito ao assistir uma série de documentários chamada Sangue Latino, que foi ao ar pelo Canal Brasil. Neste episódio específico me deparei com uma entrevista de Milton Nascimento que relata um momento sui generis de sua própria descoberta espiritual. Em dada época pelos eternos anos 60, em um dos palcos que frequentou no interior de Minas, antes ainda de fazer sucesso, teria vivenciado uma experiência ao sabor da transcendência. Ao subir ao palco foi acometido e iluminado por uma mística luz, uma névoa fascinante que resplandecia em um êxtase de torpor, que o guiaria para sua maior missão que era fazer do próprio palco um templo, e que ali deveria seguir sua vida e seu destino. Segundo ele, era a espiritualidade (que em sua crença era um misto de espiritismo, umbandismo e catolicismo) que o convocava para seu bem maior: cantar e compor o cosmos mineiro. Estabelecia-se ali para ele a sacralidade do palco.
[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Tal como Blaise Pascal, Milton obteve sua virada mística.
Vários biógrafos deste filósofo e fundamentador da metafísica dos milagres indicam que, certo dia, ao passar de charrete por uma ponte da Paris do século XVII, Pascal teria quase morrido quando seus cavalos ameaçaram cair na profundidade do rio Senna, e nesse quase morrer pode contemplar o dualismo da miserabilidade-potencialidade que permeia a alma humana: “um nada do ponto de vista do infinito universo, um tudo do ponto de vista do nada, isto é, um meio-termo entre o nada e o tudo”. Como um Pascal às avessas, Milton presenciou não um abismo místico, mas sim arquitetou um traço musical que o colocaria infinitamente longe do nada, ainda que separado eternamente do tudo. Esse traço, certamente, possui origem nessa multiplicidade católica, negra, cosmoteológica, trágico-mineira, um canto da nossa raça e da nossa condição latino africanizada e educada sob as batutas da música britânica estadunidense. O canto da espiritualidade, o lamento dos escravos em uma surgida aldeia da arte global.
A música é esse campo imanente em constante criação de espaços com infindáveis revelações, que nem sempre possui como pano de fundo alguma renovação tecnológica ou laboral, mas pode ser sim uma simples e profunda arte de somente ser algo que já se é. No caso de Milton, várias músicas com inestimável valor apenas no ser da sua voz e violão.
Para aqueles que dizem que o místico já padeceu, em épocas de ateísmo acadêmico post contemporâneos, devem também saber que a sacralidade que ainda repousa na música ressoa diretamente no pensamento e no conjunto de uma obra. Na música de Milton fundem-se estes traços de religiosidade, da poética política pela transversão do som e do sentido, e mais ainda que tudo isso, as sequências de notas que viriam o colocar na encruzilhada de sua própria espiritualidade e existência, a partir do encontro do paradigma Lennon e McCartney com os tambores de Minas Gerais.
Tambores retumbantes de sangue, sal, trabalho e lamentos de dor, mas não menos repletos de fé, alegria e jovialidade que já ultrapassam quase que 50 anos da obra de Milton.
O abismo de Pascal é a profundidade da alma de Milton, um precipício que hora ou outra somos vertiginosamente arrastados.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]