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Imagem: ‘Luftkanone’ at the Elbe river in 1945
[/vc_column_text][vc_column_text]O som e o sentido, a música das esferas. Tratamos todos, nesta coluna, do interminável Ruído da vida, desde a aurora do mundo até as bombas-pimentas-lacrimogêneas. Por Juliano Samways.
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“O Helenos, jônios, dóricos, áticos, todos, em uníssono, polis sonoros, polis divinos, cantaram as glórias de sua civilização, a tragédia da espécie homem, ao som da siringe, da lira, bichos loucos na metade homem, metade bichos deuses, ao som do próprio som da voz, pura oralidade.”
[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]No início era som e sentido.
Vívido nos agentes pré-históricos a sonoridade bárbara da sobrevivência, o rito, a dança, o fogo, celebração de cada dia, uma passagem para o amanhã, estava lá a cor originária da música. Não era uma música em tom pastel, mas era sim desvelada e colorida pelo sol e pela lua na aurora da humanidade. Canto nômade nas estepes africanas.
Fizeram-se os primeiros Estados, o fluxo do Tigre, Eufrates, Nilo, o som das águas e da fertilidade, cantorias em torno da chuva, da nova colheita, do trigo e do sal da terra mãe. Cantaram-se as primeiras leis, tom por tom, gente por gente, modo de produção musical asiático. Lançaram-se ao Mediterrâneo ávidos por mais música, cantarolavam na travessia.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]
Os Helenos, jônios, dóricos, áticos, todos, em uníssono, polis sonoros, polis divinos, cantaram as glórias de sua civilização, a tragédia da espécie homem, ao som da siringe, da lira, bichos loucos na metade homem, metade bichos deuses, ao som do próprio som da voz, pura oralidade. Cantaram a sua história dentro de histórias, os seus versos dentro dos versos, dentro das músicas.
Com os latinos o canto imperial das leis, cantava-se no Senado, em todas as ruas que levavam a Roma, todas as vozes que levam a César, dai a Brutos o que é de César, sua melhor canção, seu melhor adágio, adaga da traição. Cantaram o prazer extremo, se calaram perante a história diante do mar da Galileia.
Cristo cantou os salmos de uma nova era, cantou com os seus doze companheiros celebrando o pão e o vinho, o amor, a amizade, a traição, ressureição, imortalidade musical. Culpou a Deus, seu pai, por que cantava sozinho?
O canto medieval musicalizou a vós do Nazareno, ressaltava nessa espécie de mantra que é o canto de Gregório a culpa infinita que todos carregamos, pois cantamos por redenção, por compaixão, e por persuasão. Cantamos o ódio de Deus nas Cruzadas.
Nos lamentos de dor, em meio a uma epidemia de peste negra, os citadinos enterravam seus corpos e velavam na criatividade do ato fúnebre. Corpo sobre corpo, tom sobre tom, encontraram o inferno na terra, o diabolus in musica.
Ao recital de Camões se investiram os portugueses nas grandes navegações. Cantaram com os índios as mortes de outros índios, e depois a morte da morte de escravos, os mesmos das estepes africanas, vendidos por seus Reis ao entorno da mesma fogueira que outrora celebrava a colheita. A colheita sob a música das almas.
Veio da Europa para a América um novo som do sentido. Da Revolução Francesa às Inconfidências brasileiras, hinos carregados com o símbolo da liberdade, que tão tardia chegou para aqueles que quase não mais cantavam, um gemido de dor no coração do Brasil, negro ecoou.
No início do século XX, as marchinhas anarco-sindicais, o samba jazz se torna samba enredo em um desfile nacionalista na festa do sentido da ordem e progresso, semiótica do fascismo no que viria a ser o maior espetáculo da terra. Anauê, CLT!
Na ditadura militar brasileira as reverberações do som eram mascaradas pela resistência do sentido. A guerra fria da música, a derrocada da censura, a vitória da Regina, Nascimento, Francisco, as ruas que se faziam caladas, cantaram novamente e novamente.
Estamos aqui e agora, com nossas memórias e dna’s, buscando o sentido de nossas heranças africanas, asiáticas, greco-latinas, cristãs, luso-anarco-francesas, o sentido de nossas vozes, de nossos sons, em meio a balas de borrachas, bombas de gás desafinadas. O Estado canta suas armas, a política recita seu ódio. O barulho intenso das multidões em protesto.
Procedemos a retomada piegas da História quando o absurdo está novamente colocado, novamente desvelado, novamente devemos cantar? Mantendo a crença na arte e na música?
Segue o som.
No agente teleológico da música, o horizonte resplandece de sentido neste som intermitente da vida.
Como diria Claude Levi-Strauss: tristes são os trópicos que não cantam!
No fim era som e o sentido.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]