Ruído

A música de Zoroastro

Imagem: Rafael Sanzio – A Escola de Atenas, 1509–1511

Juliano Samways nos apresenta ao ritual dos Iazidis, ao culto de dança e de música ao redor da fogueira em honra à figura de Zoroastro. Descubra o que essa distante religião iraquiana tem a ver com o nosso imaginário e com a nossa trágica existência.


Em tempos de trevas, talvez a música possua um ditame ainda mais necessário: ela nos conecta com algo de espiritual, ela nos atribui um estado de não-ser, não-saber, não querer-ser, não querer-saber.

Dentro das costumeiras trevas que assolam o cotidiano da História vivemos uma espécie de ruído contínuo de intolerância. Este ruído acaba por desenvolver o contra-ruído deste texto.

Os Iazidis são uma minoria étnica religiosa que habitam o norte do Iraque, e que vivem nos dias atuais o martírio de serem perseguidos pelo chamado Isis, vulgo Estado Islâmico. São perseguidos porque mesclam dentro da sua doutrina traços de forte influência cristã junto a um culto pagão das antigas religiões da Mesopotâmia, dentre elas o culto a Zoroastro, antiga religião do profeta Zaratustra, pregador da arcaica crença dualista que dividia o mundo entre forças do bem e do mal.

Na dança e na música, ao redor da fogueira, os Iazidis contemplam as forças da natureza em contrastes que salpicam no fogo, queimam no embate cosmológico da bondade e perversidade. Nas notas proferidas de sua música envolvente e oriental na fundação, que segue não nosso modelo tonal, mas sim aquele que não adota a versão racional do tom e semitom, desvendam seu mundo interior no exterior da música. Num modelo hipnótico e de repetição, esvaziam sua mente e coração. Deste ritual quase que mágico surge uma possível contradição desta nossa mente ocidental e também tonal: o amanhecer cristão e disciplinado de seu povo. Há muitos séculos, queimam e renovam suas crenças em fogo lento e constante.

Seus templos são dedicados ao Sol, dedicados aos ritos de renovação sempre constantes do universo, o sagrado coração do universo é o que pulsa no peito de cada um dos seguidores Iazidis. Notabilizam-se por ocupar o alto das montanhas do norte iraquiano, cantam e dançam nas alturas, na aridez do deserto. Peregrinam uma vez ao ano, e em um período de sete dias, renovam seus votos com o Zoroastro cristianizado, cantam a Zaratustra.

O filósofo alemão, Friedrich Nietsche, crítico audaz do cristianismo, escritor anacrônico e reeditor do profeta Zaratustra, dançaria em torno da fogueira dos Iazidis. Ambos saberiam que a música possui essa forma intempestiva que nos torna cristãos, trágicos, imorais, amorais, atemporais. Em um transe sempre alerta a música nos insere no meio de algo que está sempre em translado, não sabemos do poente nem nascente, somente sabemos.

Em tempos de trevas, talvez a música possua um ditame ainda mais necessário: ela nos conecta com algo de espiritual, ela nos atribui um estado de não-ser, não-saber, não querer-ser, não querer-saber. Karl Jaspers, filósofo também alemão, falava do sentimento trágico da música como uma espécie de consciência intuitiva, um saber do saber, uma super consciência das consciências. Denotou, Jaspers, uma tradição que se construiu no decorrer do século XX no entorno desta transcendência da música. Consciência na loucura: algo que tragicamente necessitamos.

Quem brinca com música flerta com a magnitude das tragédias cotidianas. Neste sentido a tragédia é uma espécie de comédia do drama. Rimos de mãos dadas com Zaratustra, e observamos o tempo que passa, tanto para nós quanto para os Iazidis, tanto nas montanhas dos vales desérticos, quanto no deserto de cada arranha-céu das grandes cidades, nas lajes acinzentadas das periferias.

O trágico novamente acompanha o povo de Zaratustra. A cultura milenar da Mesopotâmia está na verdade a zombar de todos nós, está nos zoroastrificando. Dentre todos os nossos dramas cotidianos, lá na beira do Rio Tigre, esquina com o Eufrates, Zaratustra nos conecta com a terapia da música, com o antídoto de todas as tragédias que é o próprio trágico da música. Queima no delta mesopotâmico a tragédia das tragédias, pois é a verdadeira música aquele mesmo que retorna de modo diferente, para o bem ou para o mal.

Zaratustra é um cara de cabeça decepada ao ritmo da navalha. Sua cabeça no cesto canta uma música, um verdadeiro ruído dos ruídos no eterno retorno do universo.

Iazidis somos todos nós, que apelamos ao rito do Youtube para superar nossa trágica existência, rezamos e pregamos na internet nossas mazelas e agouros. Escrevemos desesperados em um post do Facebook: a música é o empoderamento do trágico!

No Sol nascente do deserto, protegidos pela sombra e o frescor da água dentro do templo nas montanhas de Sinjar, os Iazidis contemplam também o silêncio. Afinal, pode haver música sem ele? Um estrondo corta a montanha! Relâmpagos cintilantes no céu de Zoroastro?

Mesmo em um céu retumbante de mísseis, os Iazidis continuarão sua música tragicristã.

Juliano Samways
Professor de filosofia, autor, músico, estudante, ex-enxadrista, ex-filatélico.

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