Guilherme Gontijo Flores trata à sua maneira da tradução, esse ato de política e de amor, esse re-cuidado com uma matéria estética com a qual nos ligamos definitivamente através da reescrita.
sempre achei que a tradução poderia ser enquadrada como um ato delirante de amor.
não toda tradução/não qualquer tipo de amor.
então depois da afirmação brega e das escusas
posso falar algumascoisa
no mais sucinto dos possíveis.
vejamos.
eu me interesso muito pelas traduções eletivas
(esqueçam tudo que não é literatura)
(esqueçam quase tudo que não é poesia, de um modo ou de outro
[não, eu não gosto da divisão entre prosa & poesia])
fora do a priori do mercado
nesses casos o que acontece?
um leitor decide verter um texto
provavelmente porque o ama
de um amor delirante daqueles em que desejamos ser o amado
“Transforma-se o amador na coisa amada” (o velho camões via petrarca?)
mas assim também usurpa porque ama
& por fim também transforma a coisa amada em seu amante
(porque não existe nem não nunca jamais haverá tradutor invisível)
mas são dois amores
o outro é com o possível outro leitor
porque toda escrita é escrita para
(onde haveria escrita-em-si?)
o outro
então o tradutor acaba – sem saber talvez – nesse amor
pelos desconhecidos
enquanto entrega a eles o resultado
usurpador & delirante
do seu amor por outro texto
& recapitulando
o texto em que o tradutor se transformou
para também transformar o texto em si
para por fim dar o texto ao outro
por isso o afeto da tradução — como todo afeto — é político
aquilo que move a traduzir é uma relação
uma relação crítica com o texto
uma leitura específica uma transubjetividade(?)
que move o passado e o distante geográfico para o presente
(por que motivos? ninguém saberá dizer)
& provoca um movimento entre textos
na chegada & (certamente) na partida
the translator imports new and alternative
options of being (george steiner dixit)
porque transforma-se no que importa
e importa aquilo que ele mesmo transforma
numa espécie de convite amoroso à tribo
que ao mesmo tempo fura/quebra/parte
aquela unidade ficcional da tribo
por isso mesmo
por ser afeto & política
a tradução importa
ps: a imagem é uma tabuleta bilíngue (sumério-acádio), datada entre os séc. IV-I a.c., com a inscrição cuneiforme de uma balag, poema cantado de lamentação. nele vemos inanna, deusa suméria da fertilidade, lamentar a decadência de seus templos. o sumério já era uma língua morta desde pelo menos o séc. XXI a.c.