Interrogatório

Interrogando Raoul Sentenat

Em homenagem ao artista cubano Raoul Sentenat, falecido em dezembro último, a R.Nott reservou o espaço do Interrogatório deste mês para uma matéria que comenta a sua trajetória e mostra algumas de suas principais obras.

 

Raoul Sentenat: Faces

 

Raoul Sentenat era um dinossauro. Um dos últimos. Caçava rostos nas paredes de Nova York e os fotografava. Caçava rostos na pintura, entre máscaras e faces humanas, e os desdobrava de maneira mágica. Seus rostos eram cerimoniais, austeros, religiosos. Dizia, ele mesmo, ser o rosto humano uma obsessão, a parte do corpo que era a mais comunicativa e eloquente, juntamente com as mãos. Raoul tinha o talento de se entranhar nos próprios muros da metrópole para encontrar beleza e significado, misturados entre camadas de papel velho, propagandas coladas e re-coladas, tijolos, novidades, advertisings. Talvez isso se deva ao fato de Raoul não ser um Nova Iorquino de nascimento: o olhar apurado do estrangeiro, daquele que engole a capital ao invés do contrário.

 

 

Raoul Sentenat era cubano de Havana, exilado nos Estados Unidos. Conta-se que conheceu em Cuba o ainda pequeno Che Guevara; que compartilhou a plateia de um teatro com Tennessee Williams; uma calçada com Akira Kurosawa. Titulado em pintura, pupilo de Emilio Estevez. Frequentou poetas e fotógrafos. Transitava ele mesmo pelos diversos meios e mídias sem problemas. Dedicou-se à literatura. Foi publicado, realizou leituras públicas, editou revistas. Seu trabalho de instalações fotográficas apareceu na CBS e teve Allen Ginsberg como convidado especial. Dirigiu um programa de televisão a respeito de percussão brasileira, com a aparição de Cyro Baptista. Apareceu na MTV.

 

 

As faces de Raoul Sentenat são muitas. Como um autêntico artista do século XX, embrenhou-se em grupos literários, estéticos. Achou, no entanto, o caminho final de sua pintura nas máscaras rituais. Máscaras que simbolizavam os tempos imemoriais do homem: um retorno às origens; um retorno à pintura, sua técnica primeira. Raoul procurava no instrumento maior da expressão humana o sentido de sua arte: o rosto virado máscara, que vira rosto novamente. Um trabalho de pintura acompanhado de um projeto, um statement: “Eu amo observar a infinita variedade e diversidade das faces humanas, o que cada um de nós mantém para si mesmo. Eu procuro por momentos desprotegidos nas expressões faciais das pessoas, as contorções da máscara humana, o mistério de outro ser humano”. Enquanto o próprio objeto cênico-máscara representa uma generalização de sentimentos e caricaturas da psiquê humana, um símbolo representativo de sentimentos comuns a todos nós, a procura de Raoul em sua pintura parece ser uma procura pelo rosto desprovido da máscara social, o particular, o oculto: aquilo que define a humanidade do ser em seu mais íntimo sentido. A máscara ritual, máscara do verdadeiro sentimento interior, desprende-se da máscara diária, comum à espécie, o que acontece num lapso, em uma fração de segundos onde, como diz o próprio artista, o rosto baixa a guarda e revela aos outros aquilo que é íntimo para si mesmo. Uma lógica fotográfica de captura do momento decisivo. Ambivalentes, as faces de Raoul Sentenat revelam-se diante do espectador, expondo a grandeza da humanidade em gestos, expressões incertas, envoltas em auras e aspectos de tradição, religiosidade, vida em sociedade. Embora vivamos em sociedades não primitivas, percebe-se que a máscara é necessária, que é parte do ritual diário da vida e do que mostramos ao mundo e aos outros.

 

 

As tintas de Raoul transbordam em grossas camadas borradas. As tonalidades do rosto e do fundo se confundem, as transições são pouco definidas. Os rostos são grosseiros, de traços largos, parecem estanhos aos nossos olhos, brutos, e igualmente comoventes. São ao mesmo tempo mais que um ser humano, imponentes, rústicos, ancestrais, e incrivelmente humanos em sua dimensão mais oculta. Comovem-nos.

 

 

A não-forma da arte em seu estado atual – não-escola, não-tradicional, não mais século XX – e o seu formato-moda que se contenta com a novidade e com a originalidade, tornando muito mais rápidas as transições por estilos, sendo necessárias as breves transições, enfraquecendo-a ideologicamente, pois bem, esse estado da arte encontra uma barreira no projeto de Raoul Sentenat, fincado ideológica e esteticamente na investigação da transparência facial humana, do seu monitor social. Penso eu que o mesmo ocorre com seu projeto fotográfico. As linhas se convergem em um ponto em comum, já que as máscaras são também muros que escondem a intensidade da vida e a emoção. Em uma busca minuciosa, encontra-se rostos nos tijolos, bem como se vê emoções em uma máscara. Nada em sua arte é transitório, mesmo que o instante seja ínfimo, pois consiste no que há de eterno no ser humano e que o define como tal: humanidade. Achar rostos grudados sob camadas de cartazes nas paredes é semelhante a achar algum desconcerto no grande concreto da máscara social. Raoul despe seus rostos de pudor e sisudez. A ancestralidade das máscaras rituais e religiosas se desfaz no momento em que vemos a nós mesmo ali refletidos. Colocamos esses rostos em frente aos nossos, e ao mesmo tempo por detrás deles, máscaras simbólicas de nossas emoções.

 

 

Raoul Sentenat faleceu nos últimos dias de 2013. Poucas semanas antes, não só aceitara nos conceder uma entrevista, que viria a sair já nos primeiros números, como demonstrara diversas vezes apoio ao nosso trabalho e ao projeto editorial da revista. Fica no Interrogatório deste mês essa homenagem da R.Nott Magazine e minha, já que, mesmo que por pouquíssimo tempo, tenhamos tido um contato tão saudável e enriquecedor.

 

 

Mais em:

http://www.sentenat.com

http://sibila.com.br/critica/as-mascaras-magistrais-de-sentenat/10364

Vinicius F. Barth
Doutor em Estudos Literários pela UFPR. Tradutor das Argonáuticas de Apolônio de Rodes. Escritor e ilustrador. Autor do livro de contos 'Razões do agir de um bicho humano', (Confraria do Vento, 2015) e do livro de poemas e ilustrações '92 Receitas Para o Mesmo Molho Vinagrete' (Contravento Editorial, 2019). Ilustrador de Pripyat (Contravento Editorial, 2019). Estudante de saxofone.

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