foto: Vinicius Ferreira Barth
Guilherme Gontijo Flores, que é também o nosso entrevistado do mês, inaugura a coluna de Literatura falando sobre um dos seus contemporâneos mais antigos. Confira aqui.
“por isso eu quero falar de um dos contemporâneos mais antigos, e, pra ser sincero, um dos meus favoritos: ele poderia se candidatar ao meu contemporâneo favorito de todos os tempos. mas, pelo prazer do suspense, eu não cito nomes, não por enquanto.”
a literatura contemporânea sempre impressiona.
muito.
há um certo fetiche por ela ser nova, por poder dizer o novo, quem sabe o mais que novo, o além do nosso tempo. quem sabe ela já não seja póstuma, compreensível apenas para os pósteros? e nós, que não somos bobos, queremos estar entre esses não-nascidos, para frequentar o seu saber, ou mais, demonstrar como também estamos além-de-contemporâneos exatamente por sermos contemporâneos. eu não sou diferente de ninguém, mesmo que latinista, mesmo que empenhado em traduzir elegias de propércio e odes de horácio.
por isso eu quero falar de um dos contemporâneos mais antigos, e, pra ser sincero, um dos meus favoritos: ele poderia se candidatar ao meu contemporâneo favorito de todos os tempos. mas, pelo prazer do suspense, eu não cito nomes, não por enquanto.
mas posso descrever as obras.
pensem no seguinte – pensem mesmo:
eu falo de uma obra literária escrita, mas ela certamente não se resume à folha de papel, porque ela é, na sua origem, uma performance oral que agora está escrita, talvez como um pássaro empalhado que nós podemos imaginar num voo. assim, como ela não está no seu universo original, esse desencontro entre a fala originária e o texto que nos sobrou marca toda a obra: em lugar da performance perdida, temos variantes textuais (como no caso das 6 primeiras edições do grande sertão: veredas, que variam porque o próprio guimarães rosa alterou seu texto continuamente enquanto estava vivo); por isso, cada leitor pode, até segunda ordem, escolher e ler textos diferentes, se optar pelas variantes possíveis para cada trecho. cada um pode visualizar o que seria seu original, sem que nunca ninguém possa ver o que ele foi de verdade.
e mais, esse texto, que não é texto, está escrito numa língua artificial que nunca foi exatamente falada por povo algum, mas que, apesar desse estatuto, é traduzível; então precisamos aceitar que só meia dúzia de loucos (i.e. apaixonados ou desocupados) podem folhear as variantes na língua original, para fazer com que o resto dos leitores interessados leiam alguma tradução do que conseguirem interpretar.
vocês estão me acompanhando?
nosso texto, hoje, foi um suposto acontecimento oral numa língua sem falantes nativos e que só se propaga em texto escrito, sobretudo traduções: é, talvez, como a foto de uma estátua.
agora, a coisa linda ainda não chegou: a narrativa é marcada por uma recorrência rítmica que impede a categorização desse texto em romance, ou prosa. meu contemporâneo é poesia, mas poesia longa, bota aí umas 300 páginas para cada obra, pode ser?
e narrativa. mas se fosse uma narrativa fácil eu não gostaria, não seria minha contemporânea nem apontaria para os pósteros, certo? então ela não é fácil, está cheia de lacunas, alusões a outras narrativas que praticamente desconhecemos, enquanto narra uma guerra, sem contar propriamente seu início e seu fim. em certos momentos, parece que não se trata de uma guerra, mas de um jogo de honra, poder, quem sabe de amor, mas sobretudo de amor próprio, porque esse cara não cairia nas balelas do amor romântico.
aliás, se há algum relacionamento amoroso digno de nota – na verdade, penso que são três – eles fogem um pouco ao padrão hollywood: nós temos um triângulo amoroso, com uma adúltera mais que sedutora, capaz de lançar olhos de cadela sobre uns pobres guerreiros de baixa capacidade afetiva; um belo e simpático casal tradicional que está no lado dos derrotados (o marido morto, o filho será morto, a mulher será escrava sexual de algum general); e um suposto casal gay de guerreiros suados e violentos capazes de amar outro homem fervorosamente, com ou sem penetração anal, que parece não ser o centro afetivo deles.
no mais, tudo se centra numa briga de dois poderosos por uma questão mesquinha a respeito de butim de guerra, aliás, a respeito de uma mulher escrava que não é particularmente desejada por nenhum deles.
o ponto fundamental é o orgulho de cada um num cabo de força para determinar até que ponto os jogos de poder delimitados socialmente são conservados em um estado de sítio constante. o que, por sua vez, nos leva ao tema da morte: um desses homens sabe do seu fim inevitável – ele vai morrer nesta guerra. e ele, por tolice ou vanglória, está disposto a seguir seu destino de matança e morte na esperança de ver seu nome na boca dos outros.
e só.
ele não espera nada no além-vida, prazeres do paraíso cristão, ou virgens por deflorar a cada dia, ou batalhas nórdicas que se reiniciam a cada nascer do sol. ele mata e ele morre por um nome, e é essa figura sentimentalmente esvaziada que ama outro homem, e é essa figura peculiar, “que ficou desnorteado, como é comum no seu tempo, que ficou desapontado, como é comum no seu tempo, e que ficou apaixonado e violento, talvez como vocês” (diria Belchior, um nosso contemporâneo), que nós podemos chamar de um herói.
o ponto crucial é que, para amarmos esse herói, não basta o louvor da guerra. de fato, ele mata sem pestanejar, ele é o suprassumo de um rambo, ele consegue parar um rio só pelo número de cadáveres que ele lança lá dentro, ele parece ter pouco respeito por homens e deuses. em resumo, uma figura insuportavelmente humana, inclusive no seu vazio.
mas nós não poderemos ver ou chorar a sua morte, talvez como não se pode ver finalmente tony soprano ser baleado no último episódio de the sopranos, para apenas imaginarmos essa figura monstruosa que não fomos incapazes de amar. ao percebermos isso, talvez possamos entender a guerra em seu horror, em seu esvaziamento completo do que não é ganância por ganância, ou honra por honra, ou poder por poder. por isso, apesar de toda a história ser sobre um matador, nós teremos de chorar um derrotado ao fim desse livro, desse contemporâneo mais antigo, disso que eu posso chamar de meu homero.
post-scriptum: alguém realmente esperava que eu fosse falar de outra coisa? numa espécie geneticamente estável há muitos milhares de anos, num planeta que já conta seus 4,5 bilhões de anos, inserida num universo que supostamente completou mais 13 bilhões, onde ela conta menos do que um grão de areia no egito, alguém realmente acha que eu vou me resumir a ser contemporâneo do cara que nasceu na mesma década que eu? alguém de fato acha que um guarani kaiowá – que hoje perde vergonhosamente seus direitos sob o nosso governo – é mais ou menos contemporâneo que sartre ou pitágoras, ou que a poesia de hafez ou a antologia dos cantares organizada por confúcio? não, meus caros, estamos todos partilhando um instante do cosmo, e whitmanianamente eu gostaria de abraçar também a todos os mortos, meus contemporâneos.