Visuais

A estética do cotidiano

“O fotógrafo também é visto pelo mundo que ele registra, ao mesmo tempo em que não vemos esse mundo senão pelos seus olhos.”

Praticamente não há quem não seja, hoje, um fotógrafo.

Em um tempo de contradições tecnológicas, em que a fotografia digital matou sem piedade o rolo de filme, que por sua vez renasceu como uma fênix nas mãos dos retrôs e dos Lomos e que hoje divide território com celulares e Instagrams, é difícil definir que espaço a fotografia ocupa dentro de uma sociedade que consome, acima de tudo, imagens. Contraditório? Talvez não.

A insaciabilidade de uma época que valoriza e devora o Novo (see – like – share – next), mesmo que esse Novo seja um evento do passado revisto em condição de entretenimento (onda Retrô?), parece jogar uma nova luz sobre o pensamento fotográfico. Produz-se fotografia massivamente, e quase que exclusivamente em termos de consumo e diversão. Mais do que suscitar um pensamento (estético, artístico ou social), mais vale conquistar ‘curtidas’, e a fotografia digital do nosso tempo, por conseguinte, tornou-se a fotografia da efemeridade, do descarte, muito diferentemente da ideia de conservação simbolizada pelos volumosos álbuns de fotos de férias ou de casamentos, ou, simplesmente, pela impressão em papel. Poeiras e imagens desbotadas, símbolos materiais de outros tempos.

Como, então, explicar o Retrô e o enorme gosto por aplicativos com filtros que deixam suas fotos com um gostinho de 1975? Como explicar as câmeras Lomo, analógicas e de plástico, antagonistas conceituais e existenciais dos canhões tecnológicos Nikon, Canon, Sony, etc.?

É difícil resumir. Talvez tudo seja um esforço em busca do diferente, do ‘like’ pela sensação de originalidade, pelo cool da “Retrografia”. Mas ainda deixo a questão em aberto. Nosso tema em si já é anacrônico o suficiente.

Com tanta gente fazendo fotos em tantos lugares, o que significa Fotografia de Rua? (com letras maiúsculas = termo consagrado. Anacronismo, desuso, atividade plena?). Uma diferença clara estaria posta em comparação com a fotografia instantânea de redes sociais: na mesma proporção em que socialmente desejamos notoriedade e atenção, o “fotógrafo de rua” (encaixado nesse gênero já consolidado) pouco se mostra. Explora menos a sua própria imagem que o seu olhar, expõe menos do que absorve. Esse indivíduo se comporta como um filtro particular de leitura e interpretação do mundo.

Essa tentativa de compreensão também se mistura com a interferência dele próprio sobre o que vê. Uma fotografia nunca é um retrato fiel da realidade, mas uma composição de elementos agregados pelos olhos do fotógrafo. Daí pode-se partir do movimento imperceptível de Cartier-Bresson à abordagem quase predatória de Bruce Gilden, e a Fotografia de Rua volta-se ao seu autor e se torna um retrato dele mesmo. O fotógrafo também é visto pelo mundo que ele registra, ao mesmo tempo em que não vemos esse mundo senão pelos seus olhos.

E num tempo em que tantos fotografam, já existindo um cânone ‘street’ tão bem estabelecido (seja em Nova Iorque, Paris ou Hong Kong), por que se fazer Fotografia de Rua? Alguns diriam ser uma atividade anacrônica, pouco de acordo com o amplo domínio que têm as pessoas sobre aparatos fotográficos; ou seja, as pessoas se veem constantemente, sem a ajuda de um fotógrafo-mediador-intrometido. Em preto e branco ainda? Só se for pra tirar uma onda Retrô. Não obstante, ainda se faz. Por que esse tipo de fotografia ainda existe?

Talvez o impulso de interpretar o mundo e a gente ao nosso redor ainda seja grande. Talvez a fotografia do cotidiano e das emoções genuínas nos ofereça um material tão literário quanto qualquer obra literária. A diferença é o grau de improbabilidade, onde não se sabe que protagonistas surgirão na próxima esquina ou que drama se presenciará (ou não) no dia seguinte. Desse ponto de vista, o fotógrafo é um diretor que carrega um palco nas mãos, e nesse palco é capaz de reunir num milésimo de segundo atores que nunca tiveram nem terão nada em comum entre si, a não ser aquele momento infinitesimal de protagonismo dramático. O mundo constantemente nos oferece cenas e personagens perfeitamente dramáticos ou cômicos, mas nem sempre estamos preparados para vê-los. Isso quer dizer que fotografias ‘históricas’ ou ‘memoráveis’ estão em todos os lugares, sendo formadas e deformadas nesse fluxo temporal incessante. Apenas uma quadra, alguns metros ou mesmo alguns segundos podem separar o fotógrafo daquilo que ele mais procura quando varre as intermináveis ruas da sua cidade: significado.

Por isso, seja em Nova Iorque (a Meca, por seu ‘crazyness’, pela vida abundante que flui e beira o nonsense), seja em Tóquio ou em Buenos Aires, o tema desse gênero segue o mesmo. Mas o resultado nunca é igual, como nunca são iguais os olhares e as compreensões. É interessante notar como a necessidade da Fotografia de Rua segue existindo, seja ela produzida em filme ou em um tablet, e muitas vezes nem sequer sabemos para quem mostrá-la. Talvez seja apenas para nós mesmos, em um modo único e anacrônico de entender o nosso próprio olhar e o meio que nos envolve. Deslocamos do cotidiano o próprio cotidiano e o resignificamos.

Visto sob os olhos corretos, qualquer mundo é estético o suficiente.

Vinicius F. Barth
Doutor em Estudos Literários pela UFPR. Tradutor das Argonáuticas de Apolônio de Rodes. Escritor e ilustrador. Autor do livro de contos 'Razões do agir de um bicho humano', (Confraria do Vento, 2015) e do livro de poemas e ilustrações '92 Receitas Para o Mesmo Molho Vinagrete' (Contravento Editorial, 2019). Ilustrador de Pripyat (Contravento Editorial, 2019). Estudante de saxofone.

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