imagem: Vincent van Gogh – Os comedores de batatas (1885)
“Não há, portanto, precedente real para a arte da vanguarda, ela evoca ‘o que não existe'”
por Sandra M. Stroparo[1]
As vanguardas estéticas do início do século XX não são as inauguradoras da modernidade, mas talvez marquem o seu auge. Ou início da decadência como descreveriam alguns. Essa, no entanto, é uma questão interminável: para Harold Bloom estamos, desde o Romantismo, em plena Modernidade (e ainda, para ele, a pós-modernidade é uma distorção de conceitos). Aquém e além dessas discussões, talvez nos interesse aqui usar como referência o período das vanguardas como um apoio possível, temporal e estético, o lado de lá de alguma ponte que podemos tentar levantar. Exercício de convencimento: tomara que ela, a ponte, não caia, pra lá ou pra cá.
Dentre as muitas características das vanguardas, gostaria de escolher duas para usar como referencial, alicerces para a tal ponte. A primeira delas seria o uso do, digamos, não-real, do não existente, da criação como elaboração de um universo que chama atenção para si próprio especialmente porque não temos, na realidade mundana, nada que se pareça com aquilo. Ou melhor: para alguns críticos, a arte de vanguarda não parece, num primeiro momento, criar algo que pretenda expor, ou representar, ou por vezes mesmo “comentar” a realidade. A vanguarda vai encontrar em si mesma, na sua nova linguagem inventada, seu próprio mundo. Durante o século XIX, aos poucos, a atenção dos artistas desloca-se do “o que” para o “como”, na construção de uma arte que vai possibilitar a existência, como auge ou decadência, das vanguardas. Como quer Marjorie Perloff, tratando de Rimbaud (inequívoca e constantemente reverenciado como o primeiro nome da vanguarda), “There is no real precedent for the anti-paysage of the Iluminations. The first thing to say about the “cities” evoked in “Les ponts” and “Métropolitain”, in “Parade” and “Promontoire”, is that, in the words of Rimbaud’s “Barbare”, “elles n’existent pas”. Não há, portanto, precedente real para a arte da vanguarda, ela evoca “o que não existe”.
A segunda característica pode ser justamente a mais oposta à primeira. Assim, um dos argumentos dos artistas do começo do século para as novidades defendidas por eles era justamente o de que o Realismo vigente era conservador demais, inexato demais, e escondia aquilo que o século XX não demoraria a afirmar (reafirmar?): qualquer representação revela uma perspectiva, um ponto de vista, algum lugar de onde se olha. Uma representação que dissesse algo sobre seu tempo, mais parecida com ele, e portanto em algum sentido mais real, ainda que por meios novos, era o que esses artistas também buscavam.
E quem diria, hoje, que um quadro cubista de Picasso, como o que ele fez uma vez de Marie Thérèse, “Mulher chorando”[2], é menos real, nos diz menos sobre nós mesmos, que a Pietà de Michelangelo? Por que as proporções tão harmônicas e a perfeição dos traços (e a tridimensionalidade, já que se trata de uma escultura…) daquela Maria com seu filho morto no colo parecem dizer algo em uma língua familiar, mas com um sotaque antigo, reconhecível, mas anacrônico para o que somos hoje? E como esse outro rosto desfeito, todos os lados daquela cabeça desmontada e remontada com lágrimas de uma Marie Thérèse que conhecemos menos que aquela outra Maria, parece nos dizer mais sobre a nossa própria tristeza?
Virginia Woolf, no ensaio “Mr. Bennet and Mrs Brown”, afirmou que “por volta de 1910 o caráter do homem havia mudado”[3]. A escritora escreve isso depois de ver os quadros de uma exposição de pós-impressionistas organizada por Roger Fry, apresentando pela primeira vez aos ingleses autores como Van Gogh e Cézanne. A idéia é dramática mas eficientemente moderna: a Arte, aquela Arte daquele momento, podia mudar o homem e oferecia portanto uma possibilidade de representação não sabemos se transformadora, mas capaz de revelar ao homem o que ele talvez já fosse sem o saber… Nada que já não tivesse sido anunciado antes. Rimbaud em seu projeto de vidência, de maneira bastante imprecisa e cifrada projetara para a arte e o artista modernos o papel da vanguarda da humanidade. Ainda alguns anos depois de Virginia Woolf, Ezra Pound insistiria nisso, numa frase tão conhecida quanto controversa: “o artista é a antena da raça”.
Mas volte-se à observação de V. Woolf. Hiperbólica ou não, a verdade é que ela relata a natureza quase violenta de uma arte capaz de transformar o mundo justamente por revelá-lo de outra maneira, por um ponto de vista inesperado mas não menos possível – ou verossímil. O olhar de Van Gogh sobre o mundo, podemos dizer hoje, é entre outras coisas uma possibilidade, uma perspectiva diferenciada das outras tantas do seu próprio tempo, e até por isso incompreendida pelo seu próprio tempo. Roger Fry defendia a ideia de que esses pintores trouxeram emoção ao impressionismo, sendo isso o que faltava para a pintura que já tinha descoberto a luz.
Talvez possamos afirmar que o “Os comedores de batata”[4] são um quadro capaz de nos dizer mais sobre camponeses pobres comendo umas poucas batatas, plantadas e colhidas por eles mesmos, do que algum quadro que fosse mais objetivamente “fiel” a uma situação como aquela. Poderíamos começar dizendo que o próprio tema já era inovador mas estaríamos errados. O Realismo, como escola de pintura, já com Courbet havia retratado pobres trabalhadores braçais em ação e o realismo inglês já pintara sua Londres dickensianamente miserável.
Assim, não estava na escolha temática o que ia abalar “o caráter do homem”, mas na forma como a representação, qualquer que fosse, se dava. Com maçãs, alguns auto-retratos e uma montanha, Cézanne muda nossa maneira de olhar tanto para as maçãs como para o resto das coisas do mundo. A arte do começo do século XX deixa, definitivamente, de ser a beleza (clássica?) a ser observada e repetida e idealizada, para assumir o papel de agente.
Mas é claro que esse não será um papel homogeneamente cumprido. Durante todo o século XX a arte passou por vários tipos diferentes de realizações que, em sua maioria, nascem das permissões abertas pelas vanguardas e afins. As artes plásticas revelam muitas dessas mudanças importantes, do expressionismo ao expressionismo abstrato, da pop art à arte da performance, todas são opções de representação que revelam, em última análise, uma compreensão também particular do que “é” a arte.
[1] Professora da Universidade Federal do Paraná, tradutora.
[2] http://www.tate.org.uk/art/images/work/T/T05/T05010_10.jpg
[3] “Mr. Bennett and Mrs. Brown” in: WOOLF, Virginia. The Virginia Woolf reader. New York/London/San Diego: A Harvest Book, 1984.
[4] http://vistaemmoda.files.wordpress.com/2013/11/foto205.jpg