imagem: Wassily Kandinsky – Amarelo-Vermelho-Azul. No. 314 (1925)
George Christian Vilela Pereira, estreante na coluna Ruído, fala a respeito dos seus processos de composição e de suas últimas obras, e também reflete sobre a presença da Imagem em sua prática musical.
“Há uma sinestesia primordial quando penso no som – e não se trata meramente de poesia. Um som tem sua característica textural, sua tangibilidade, sua forma e presença para a percepção num mundo fenomênico.”
Em uma atividade tão rica e especial como a música, é sempre inevitável o poder inefável das imagens. Ser guiado/a única e exclusivamente pelos sons é, ao meu sentir, um exercício idealista que chega a ser ingenuamente platônico. Há uma sinestesia primordial quando penso no som – e não se trata meramente de poesia. Um som tem sua característica textural, sua tangibilidade, sua forma e presença para a percepção num mundo fenomênico. Pierre Schaeffer1 que o diga. Cabe a nós, músicos, trabalhar a audibilidade e a materialidade dos sons de modo a transmitir sentidos ou empatias. Sou daqueles que acreditam que a arte resinifica o ser humano. Há uma mediação entre as imagens e os sons que é dada pela intuição – e esta é uma ferramenta primordial em meu trabalho como compositor.
Não quero, no entanto, entrar em corolários filosóficos em torno da importância da imagem no fazer musical. Meu propósito é bem mais humilde, na realidade. Este artigo se propõe a esmiuçar um pouco do meu processo criativo e fazer uma reflexão sobre a importância das imagens em minhas próprias práticas musicais tomando como referência os trabalhos que lancei neste início de ano de 2020: Imagens – Trilha Sonora para o Filme de Luiz Rosemberg Filho2, Longes3, Diamond K4 (em parceria com Antonella Porcelluzzi), Fluxos e Fragmentos5 (em parceria com Johann Heyss) e Cinzas ou Requiem para Rios Mortos6. Dentre eles, dois desses trabalhos foram originalmente gravados em 2019 – Longes e Cinzas. Não exatamente respeitarei a cronologia de gravação de cada álbum, mas a cronologia de seus lançamentos. A partir deles, procurarei distinguir como a noção de imagem pode ser repensada sonoramente. Cada um trouxe um desafio distinto para mim enquanto compositor. Quem sabe, formas distintas de se pensar a imagem no contexto da música.
- Imagens – Trilha Sonora para o Filme de Luiz Rosemberg Filho7 (2020)
É muito simbólico eu começar este artigo mencionando antes este trabalho que foi originalmente gravado em 31 de janeiro de 2020, uma trilha sonora que me atrevi a fazer de um longa-metragem que foi concebido para NÃO ter uma trilha sonora, feito por Luiz Rosemberg Filho em 1972: Imagens. Trata-se de uma composição em que quis pensar nas finalidades “sonoplastizantes” que uma guitarra experimental poderia trazer, a partir de minhas próprias habilidades como músico/guitarrista. Não somente quis evocar estados de ânimo, mas também a “imperfeição” da própria materialidade da película.
Este foi um filme que “gritou” para mim, mesmo sem me dizer uma palavra sequer desde quando o descobri. Uma realização em que trilhei, tal qual os músicos do cinema mudo nos primeiros anos do cinema, tudo no meu próprio instrumento e nos meus campos de ação. A guitarra foi gravada num simulador de amplificação e efeitos Guitar Rig, além de uma pedaleira Zoom 505II, e pedais de distorção Crusher e Fuzz e um Delay. O trato sonoro, no entanto, foi intencionalmente “imperfeito”, nada limpo, com ruídos estourados e granulares, mas com contrastes. Procurei ressaltar que o próprio filme de Rosemberg Filho foi a minha partitura no ato da criação da trilha.
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Longes (2019/2020)
A começar, não é exatamente uma trilha sonora. Talvez se vocacione a ser uma. Entretanto, as fontes para este trabalho foram, basicamente, duas: a minha própria música e as circunstâncias político-sociais (que também não deixaram de ser inspiração para Imagens, que foi um filme realizado durante a ditadura militar).
Este álbum começou a ser gravado em janeiro de 2019 e foi finalizado em meados de agosto no mesmo ano, com as participações do baterista Izaky Grimm e do flautista Ícaro Estivalet. Eu ainda estava tentando “digerir” a nova situação (calamitosa, diga-se de passagem) brasileira com a eleição do atual presidente brasileiro, Jair Bolsonaro. E, em minha mente, meu único desejo era o de me autoexilar. Minha fé na inteligência e no bom senso das pessoas passou a ser cada vez mais cética, testemunhando com um imenso desprazer um novo tipo de cenário de abandono do próprio Brasil.
No entanto, Longes é um trabalho instrumental. As fontes de inspiração sonora vieram a partir de minhas audições de Fred Frith, Keiji Haino, Sonny Sharrock e Loren Connors, e é um álbum inteiramente devotado à exploração da guitarra elétrica. Trata-se de um álbum inteiramente concebido improvisativamente, mas com um único tema melódico-harmônico que é variado em todas as faixas. Este tema foi extraído da coda final de uma canção minha originalmente composta em 2008 chamada “Muito Mais Longe do que o Bastante”8. A letra traduz o spleen e a revolta em meio a este cenário já descrito anteriormente – a dissociação cognitiva entre ser e sentir –, apesar de ter sido escrita alguns anos antes:
Muito Mais Longe do que o Bastante (11/12/2008 – nova versão: 14/6/2012)
muito mais longe do que o bastante,
perto demais de ter o instante
de surda luz, indômitos cavalos mentem fases ao fardo lunar
velhos demais de tão incertos,
jovens demais de tão despertos,
os olhos nus não enxergam mistérios,
mas suas sombras acordam universos
planetas fogem e colidem rotas de
vidas cegas sem voltas
estrelas em eclipse na longa estrada de
sol a Sol
muito mais longe do que o bastante,
mais absorto e mais vacilante,
não mais homem do que um simples feto ao nadar nos espelhos quando
não há nada mais do que o nascimento
devo ser liberto de tantas amarras
devo ser repleto de novas respostas
devo ser o sol no pó da estrada de
sol a Sol
Foi a partir das imagens poéticas trazidas pelo poema acima que pensei a composição do álbum. É uma carta de intenções, como também a verdadeira chave para a compreensão de Longes. Não se trata de uma trilha poética, mas 10 diferentes quadros que expõem formas de distanciamentos em nome de uma autodescoberta.
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Diamond K (2020)
Este EP, gravado em fevereiro de 2020, foi produto de um convite da poetisa/ cantora e cineasta italiana Antonella Porcelluzzi. A princípio, fiquei surpreso pelo interesse dela pela minha música, mas depois percebi que ela procurou e viu em meu trabalho musical algo que pudesse “trilhar” a poética cantada dela nessas gravações que, inicialmente, se chamavam “Pure Reggae”.
Quando ouvi a voz áspera e, ao mesmo tempo, terna de Antonella em cada canção, senti precisamente o que precisava fazer, a “imagem” da obra estava começando a clarear em minha mente. Voltei-me para o violão elétrico e criei uma afinação microtonal a partir do acorde de sol maior (com um intervalo de ¼ de tom entre a 2ª e a 3ª cordas). Em umas canções usei capotraste; em outras, slide. Trouxe uma abordagem livre de acompanhamento às canções-poemas de Antonella respeitando sua brevidade estrutural. Em cada peça, procurei replicar algumas melodias cantadas por Antonella, e responder contrapontisticamente, sem me ater muito à criação de uma harmonização. Claro, procurei dar um colorido sonoro que trilhasse livremente pela voz de Antonella, sem me preocupar com uma rítmica mais fixa.
Este foi o EP mais curto e rápido que fiz em toda a minha carreira – o material completo dura um pouco mais de 10 minutos. Por mais incrível que possa parecer, há uma proximidade entre o que eu e Antonella fizemos e a música intuitivamente contrapontística e polimétrica de Captain Beefheart, mas numa forma mais gentil, romântica, mínima e intimista, tal qual um Nick Drake no Pink Moon. Há também algo de minha experiência com o violão clássico. É um material muito difícil de se tentar reproduzir fielmente ao vivo, inevitavelmente sofreria adaptações. A voz de Antonella e o meu violão parecem existirem em mundos apartados, mas há uma conexão inevitável.
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Fluxos e Fragmentos (2020)
2020 começou sendo um ano em que me abri mais para parcerias mais ligadas ao âmbito composicional, com uma volta parcial ao território da canção. Este álbum com o cantor e compositor Johann Heyss, no entanto, demorou para ser finalmente gestado em março de 2020. Eu havia enviado duas peças instrumentais a ele (as duas primeiras faixas) em 20189. Entretanto, somente em no final de janeiro de 2020, Johann me veio com a muito agradável surpresa do canto livre, completamente improvisado, mas totalmente em sintonia com o meu instrumental, para a minha música.
Fluxos e Fragmentos é um marco tanto para mim, quanto para o Johann. Em nenhum outro álbum da carreira de Johann, ele apostou num canto mais arriscado, com a voz usada como instrumento em vocalizes, entre invocações melismáticas, sussurros e gritos, mostrando que ele podia perfeitamente ir além da experiência avant-pop ou eletrônica. E em nenhum outro álbum meu o meu lado multi-instrumentista é mostrado de maneira mais pronunciada e clara: toco violão, guitarra, teclados em cada faixa, além de atuar na produção (com um leve toque de música concreta na 3ª faixa, “Fragmentários Exercícios de Loucura”). A inspiração maior está nos trabalhos experimentais entre o final dos anos 1960 e o início dos anos 1970 de John Lennon e Yoko Ono, mas à nossa maneira.
Quero especialmente destacar a canção “Esto No Es Lo Que Piensas”, cuja letra e melodia principal é de Johann Heyss, ao passo que eu cuidei de todo o resto como harmonizador e arranjador. Aqui, ao contrário do restante do álbum, não fui eu que forneci o material inicial. Eu, como compositor, “trilhei” o vocal de Johann, dando corpo harmônico e propondo uma exploração em camadas. Ela é uma súmula de todos os recursos que utilizei no transcorrer do álbum, tanto que ela é a faixa de encerramento. É uma espécie de cântico de sobrevivência em meio às ideias mortas. Esta foi uma faixa forte o suficiente para que se tornasse um single10 – com direito a um remix feito por Guilherme Darisbo11 e um videoclipe12 dirigido por mim, especialmente filmado no Cemitério Campo Santo em Salvador, minha cidade, além das filmagens de Johann em Montevidéu.
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Cinzas ou Requiem para Rios Mortos (2019/2020)
De todos os álbuns lançados neste início de 2020, Cinzas ou Requiem para Rios Mortos é o que mais obedece à minha concepção instrumental original, lançada desde o meu primeiríssimo álbum, Às Vezes Sempre (Stomoxine Records, 2010): a guitarra (eletro)acústica instrumental solo e a composição em tempo real13, por vezes bordejando a improvisação livre.
Ele foi gravado em duas sessões caseiras: uma outra gravada anteriormente em 21 de janeiro de 2019, originalmente para a parceria com Jeff Gburek14, e 15 de março de 2019, com o violão de aço amplificado, gravado em meu celular Samsung. A primeira sessão foi gravada sob o impacto ainda das recentes eleições, o que acabou ajudando no ânimo soturno das peças “Antes das Cinzas, O Outro Rio”, “Cinzas de um Rio de Outrora” e “Outrossim, Os Desastres”. Gravei com o violão plugado no computador, usando o Guitar Rig, além de objetos e pedais, ainda querendo dar continuidade à experiência de Longes. Nessa época, a concepção do álbum Cinzas em si ainda não existia. E como essas peças não foram aproveitadas por Jeff em sua totalidade, por ainda soarem demasiadamente solistas, elas foram devidamente guardadas para Cinzas. Poucos dias depois, ocorre o desastre da barragem de Brumadinho em 25 de janeiro de 2019. Eu senti que houve algo de premonitório no que eu fiz. A eletrônica combinada com a afinação microtonal do violão foi manipulada para transmitir sensações cumulativas em loop. Uma sensação de poluição industrial foi o que busquei evocar.
Cinzas decididamente nasceu a partir da segunda sessão, com o meu inconformismo com o ambiente festivo pós-carnavalesco em contraste com os desastres ambientais, humanos e sociopolíticos acontecendo. Não sentia absolutamente NADA a ser comemorado, a partir do que soube dos fatos pós-Brumadinho. Só me restava uma imersão na escuridão de meu quarto. As peças “Depois das Cinzas, Será Que Há Vida?”, “Mar Desconstelado”, “Constelado Revés de um Céu” e a longa peça final “Cinzas de uma Ressurreição ou Não” foram gravadas com o violão amplificado em meu quarto, tendo somente um pedal delay, além de uns poucos objetos tocados nas cordas do violão. E todas elas foram uma válvula de escape para o meu inconformismo, e executadas no final de tarde, sem acender as luzes do meu quarto. Tempos depois, soube que o compositor Georg Friedrich Haas, antes de mim, requisitava em algumas de suas peças a execução ao vivo na completa escuridão, apelando para que os músicos memorizassem a partitura previamente estudada. Em meu caso, não houve uma partitura escrita. E uma gradual escuridão natural do fim de tarde para a noite.
Com a tardia contribuição de Thelmo Christovam na última faixa em novembro de 2019, dei o álbum por finalizado. Após a recusa de 3 selos brasileiros, o selo argentino/ espanhol/ japonês Hamfuggi Records aceitou de imediato o trabalho, e concordou com a parceria com meu selo GC Sound Artifacts. E o álbum foi finalmente lançado em abril de 2020, também para não atrapalhar com o calendário de outros álbuns meus.
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Breves considerações finais
Gostaria de começar citando o poeta espanhol Octávio Paz em O Arco e a Lira15 antes de concluir:
A palavra imagem possui, como todos os vocábulos, diversas significações. Por exemplo: vulto, representação, como quando falamos de uma imagem ou escultura de Apolo ou da Virgem. Ou figura real ou irreal que evocamos ou produzimos com a imaginação. Nesse sentido, o vocábulo possui um valor psicológico: as imagens são produtos imaginários. Não são esses seus únicos significados, nem os que aqui nos interessam. Convém advertir, pois, que designamos com a palavra imagem toda forma verbal, frase ou conjunto de frases, que o poeta diz e que, unidas, compõem um poema.
Adaptando esta noção à música, toda forma sonora – frase musical ou conjunto de frases ou sonoridades – que o/a compositor/a produz é imagem e que compõe uma obra musical. Assim, a imagem é, portanto, um produto imaginativo de nossas mentes, independente do meio artístico que a provoque. E quero ressaltar que as imagens sonoras que provoquei são parte de um processo de construção muito essencial em minha música (ou poética sonora).
E, claro, as imagens que partiram de mim ao compor tais trabalhos musicais não serão as mesmas nas mentes de cada ouvinte, apesar de ter fornecido os pontos de partida neste artigo. E de que isso adianta? A transformação dessas imagens é algo natural numa obra artística. O ouvinte na música é, também, um criador de imagens. O que importa é a permanência das lições imagéticas nas memórias, tanto na mente de quem produz, quanto na de quem recebe. Minhas imagens nunca serão suas. E ainda bem que seja assim.
Notas: