Literatura

Cenas de uma Noite de Verão

capa: fotograma da versão colorida de Le voyage dans la lune, 1902 – Georges Méliès


 

As três cenas são anunciadas pela voz de um ente oculto
As luzes estão apagadas e as cortinas estão fechadas

CENA 1. DESPEDIDA
CENA 2. SAUDADES
CENA 3. TRÊS PONTOS

#

As luzes se acendem 
(Luzes baixas, amareladas, que simultaneamente remontam à luminosidade do Sol e à luminosidade da super Lua, típica do verão)
As cortinas se abrem
A cena 1 é anunciada pela voz do ente oculto

CENA 1. DESPEDIDA

(Atriz entra em cena, anda de um lado para o outro do palco e começa a recitar sua memória sem olhar para o público.
É como se o público não existisse, é como se a personagem estivesse sozinha consigo mesma, presa na lembrança a ser performada em voz alta)

Eu me lembro daquele dia frio e escuro em que te abracei forte,
Meus braços deslizaram pelos seus em direção às suas mãos.

Segurei forte em suas mãos,
Meus dedos deslizaram pelos seus em direção ao nada.

Olhei bem fundo em seus olhos, pois não sabia se um dia eu voltaria;
Também não sabia se um dia você iria desejar que eu voltasse.

Fui afastando o meu olhar do teu,

Você permaneceu imóvel, estático, vendo o meu distanciamento.

 

Olhei para outra direção.
Fiquei de costas para você e senti que você…

 

continuava a me olhar.

 

Virei meu pescoço para trás e você ainda estava lá,
Com lágrimas nos olhos e um leve sorriso nos lábios.

Nós sempre estivemos juntos e, de repente,

 

nós
nos
perdemos.

 

Parei de te olhar.

 

Não suporto os ruídos dessa dor.

 

Caminhei em direção ao vagão marcado em minha passagem.
O trem chegou e eu sabia, eu sentia que você…

continuava a me olhar.
Entrei no trem, acomodei-me em meu assento e comecei a chorar em silêncio, por dentro. Eu não poderia chorar por fora.

Não queria que percebessem que eu chorava.
O trem começou a se mover e percebi que essa despedida não se repetiria.
Jamais.

(A personagem olha para o público e sai de cena)

As luzes se apagam
As cortinas se fecham

(40 segundos se passam)

#
#
#
#
As luzes se acendem novamente
As cortinas se abrem
A cena 2 é anunciada pela voz do ente oculto

 

CENA 2. SAUDADE 

(Ator entra em cena, senta-se em uma escrivaninha que está no meio do palco, de frente para o público. Olha para a tela do computador sobre a escrivaninha. Jamais olha para o público.
É como se o público não existisse, é como se a personagem estivesse sozinha com seu computador, presa na lembrança do que certa relação teria sido.)

Quando a encontrei, sem mais nem menos, ela me disse: “Que saudades!”
Escutei e paulatinamente engoli cada uma das letras que compõem esse sentimento.
Quando as acomodei em meu estômago, dei-me conta de que a saudade não se mata.
Não é como a fome que se mata.
Engoli o sentimento da saudade e um vazio profundo se abriu em minha cavidade gástrica.
Então, disse a ela: “Que dor!”. E essas foram as últimas palavras que ela me ouviu proferir.
Há uma estranha relação entre a dor e o vazio. O vazio órfico da existência.
A dor demarca o fato de que eu também sinto saudade.
Engoli a saudade na expectativa de acomodá-la em meu estômago. Desloquei-a do meu coração em direção ao meu estômago.
Mais precisamente, o que aconteceu foi o seguinte: meu coração estava muito acelerado e cheguei à conclusão de que era por saudade.
Contudo, ao arrancar a saudade do meu coração para, em seguida, engoli-la, comecei a sentir uma dor aguda em meu abdômen.
Como disse, a saudade instaurou um vazio em meu estômago. E esse vazio, do qual desponta a dor, impede-me de comer qualquer outra coisa que não seja o tempo imemorial e irrecuperável daquilo tudo que um dia teríamos vivido juntos.
Acho que a saudade é a prova do limite do fim.

*

(Uma voz grave emana do computador; 
uma conversa entre a personagem sentada em frente à tela do computador e a voz que dele emana se inicia)

A voz grave pergunta: “E faz muito tempo que você não a vê?”
Olhando fixamente para a tela do computador, ele responde: “Sim, faz uma eternidade. Faz uma eternidade tão eterna que a sensação que tenho é a de que tudo aquilo foi uma grande mentira, que minha saudade é, na verdade, nostalgia: que o sol que unia nossos corpos em uma noite de verão nunca tocou nossa pele. Que eu quis e quero que isso tivesse acontecido e não que isso, de fato, aconteceu.”
A voz grave pergunta: “E como está o seu estômago agora?”
Olhando fixamente para a tela do computador, em um tom hesitante e reflexivo, ele responde: “Não está mais inchado pelo vazio agudo e doloroso da saudade. Que estranho!”
A voz grave diz: “Que bom. Esse era o nosso objetivo. Como você descreve o seu estômago agora?”
Ele responde, ainda em um tom reflexivo: “Agora. Agora…bem, agora meu estômago está…está desiludido. Desinchado e desiludido. Isso é normal?”
A voz grave diz: “Sim. É normal. Esse é o protocolo: da crise da despedida ao vazio da saudade à desilusão atrelada à nostalgia.”
Com certa euforia e certa preocupação, ele pergunta à voz grave: “Mas, o sol que unia nossos corpos tocou nossas peles naquela noite de verão?”

(A voz grave não responde)

Bastante preocupado, ele pergunta novamente: “Mas, o sol que unia nossos corpos tocou nossas peles naquela noite de verão?”

(A voz grave simplesmente não responde.
Ele continua olhando fixamente para a tela do computador)

Ele diz em tom de indignação: “Não acredito que isso está acontecendo comigo!”

(Ele tenta reiniciar o computador, mas a manobra é vã. Ele começa a bater no visor do computador, mas isso tampouco tem eficácia.
Ele deixa de olhar para o computador. 
Levanta-se da cadeira que normalmente utiliza para suas sessões de conversa com a voz grave.
Afasta-se da escrivaninha.
Olha para o público.
Abaixa a cabeça e se deita em uma cama de casal que está ao lado da escrivaninha)

Deitado no meio da cama de casal, ele diz: “Vou dormir sem saber, sem saber se o sol que unia nossos corpos – o meu e o dela – tocou nossas peles – a minha e a dela – naquela noite de verão…”

As luzes se apagam
As cortinas se fecham
(40 segundos se passam)
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As luzes se acendem
As cortinas se abrem
A cena 3 é anunciada pela voz do ente oculto

CENA 3. TRÊS PONTOS

(Ator entra em cena, permanece em pé no centro do palco. Olhando para o público, começa a narrar uma história. As luzes diminuem, a ponto de quase se apagarem. 
O vulto amarelado do ator, cuja silhueta é mais-que-humana, mistura-se à claridade esverdeada de um telão ao fundo do palco, onde as imagens do ponto [.] e dos três pontos […] são projetadas em consonância com as demais imagens que compõem a historieta: como a imagem da Lua, da Terra, do pulo, do salto, da queda, do Amor e assim por diante.
A leitura da história também comporta a pronúncia em voz alta das aparições gráficas do ponto [.] e dos três pontos […])

Esperei por tanto tempo. Por tanto tempo que nem mesmo os três pontos típicos das reticências são capazes de manifestar tal demora.
Mas, que viagem foi essa que fiz e que demorou tanto assim?
Fui até à Lua. Eu tinha medo, muito medo de ultrapassar os limites dos meus pés fincados na Terra. Por isso, esperei por bastante tempo



minha expectativa acabou se transformando em coragem

e a coragem gerou o ímpeto;
O ímpeto só pode ser manifestado por um ponto
.
O ímpeto é como um pulo e para que o ímpeto não frustre a coragem alimentada pela expectativa, ele precisa ser um bom pulo
.
e um bom pulo é um salto, um salto como aquele das acrobacias circenses;
Então, em um ímpeto, dei um grito e saltei
.
Caí



Enquanto eu caia e sentia o agora em sua reticência tipicamente duradoura, abria meus braços



Com os braços bem abertos, abracei a Lua e com ela me balancei de um lado para o outro

… (da esquerda)

para

… (da direita)

para

… (da esquerda)

para

… (da direita)

Pendulamos juntos.
Meus pés estavam soltos e, com suas pernas, a Lua se agarrava a meu ventre.
Pendulamos juntos por tanto tempo, por um tempo tão duradouro que se tornou imemorial;
Não me lembro de quando esse abraço começou;
Sentia que o infinito havia nos envolvido;
Mas, de repente, em um ímpeto
.
Decidi olhar para cima
.
E, sem querer, meus olhos tocaram os olhos da Terra

O olhar da Terra começou a invadir minha alma, ocupando todo o espaço que há nela

Meus braços se soltaram da Lua
.
Caí em um vórtex que bruscamente me jogou aos pés da Terra;
Sob seu jugo, ajoelhado, abaixei minha cabeça;
Disse-lhe após algumas reticências


“Isso não se repetirá. Eu juro!”
Ela me disse após mais algumas reticências, marcadas pelos três pontos de um silêncio constrangedor



“Olhe para mim!”
Eu olhei
e em um ímpeto ela me disse
.
“o Amor me pediu para lhe dizer que Ele nem sempre é ímpeto e que nem toda a expectativa gesta a coragem”


(O ator que narra a historieta, cuja silhueta é mais-que-humana, abaixa a cabeça.
Em seguida, levanta-a e olha para o público.
Pega um impulso e salta do palco na direção da multidão)

As luzes e o projetor repentinamente se apagam 
As cortinas se fecham

FIM

 

Cassiana Stephan
Pós-doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com o projeto de pesquisa intitulado “Filosofias do amor: sobre a relação entre espiritualidade, melancolia e ambivalência”. Doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR/Brasil), na área de Ética e Política, com a tese intitulada “Amor pelo avesso: de Afrodite a Medusa. Estética da existência entre antigos e contemporâneos” laureada com o prêmio Filósofas de Destaque acadêmico 2020, outorgado pela Rede brasileira de Mulheres Filósofas em parceria com a Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia.

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