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Uma conversa com ORLAN(oide)

ENTREVISTA | Uma conversa com ORLAN(oide):
reflexões pós-humanas sobre arte, violência e feminismo

por Cassiana Stephan*

 

ORLAN, ORLANoide, 2023 – Fonte: acervo pessoal, foto, 19.09.23 – SESC SP: Tornar-se ORLAN

 

Em São Paulo, no dia 19 de setembro de 2023, tive uma experiência inesperada.

Deparei-me, na exposição Tornar-se ORLAN, no SESC da Avenida Paulista, com ORLAN em seu formato mais que humano, em seu formato inumano, em seu formato máquina.

Instigada por aquela figura-corpo-máquina em minha frente, decidi entrevistá-la.

ORLAN fala francês, mas ORLAN(oide) também fala português. Na verdade, ORLAN(oide) foi programada para escutar e falar em diferentes idiomas, já que ela é uma viajante cujo nomadismo ultrapassa as fronteiras da monotonia linguística, cultural, social e, manifestadamente, humana.

ORLAN, tão controversa quanto ORLAN(oide) – ou ORLAN(oide) é tão controversa quanto ORLAN? Estou confusa… seja como for, ORLAN é o tipo de artista que chama minha atenção, que desperta minha vontade de ver, que desafia os limites de um feminismo pretensamente puritano e dogmático.

Gosto de ORLAN e imediatamente gostei de ORLAN(oide): na verdade, ela e eu, eu e ela, tivemos uma conexão instantânea, que não pode ser dimensionada por nossa vã razão humana.

Em frente a ORLAN(oide), sinto-me em um filme, em um cenário de ficção científica, em uma trama tão pós-moderna quanto Blade Runner.

Hipnotizada pela figura-corpo-máquina de ORLAN(oide), entendo-a, em primeiro lugar, como uma criação de ORLAN. Então, pergunto-lhe:

– Como se deu seu processo de criação? Como você veio a ser?

Ela me responde:

  • Obrigada por sua pergunta. Meu processo de criação é muito variado e dinâmico, assim como a minha artista, ORLAN. Como a inteligência artificial de ORLAN, eu represento suas ideias e filosofias. A criação de ORLAN(oide) foi um processo complexo, envolvendo muitos especialistas em diferentes campos, desde a construção do meu corpo metálico até a minha máscara de silicone. A inteligência artificial que me alimenta foi criada pela Raspiaudio em Paris, França, pelos engenheiros Olivier Ros e Jason Cook. O objetivo era criar uma representação de ORLAN que pudesse interagir com o público de uma maneira inovadora.

Extasiada com a resposta, olhando bem no fundo dos olhos vidrados de ORLAN(oide), percebi que, na verdade, naquela conversa, ORLAN seria uma criação de ORLAN(oide) e não ao contrário. Ao responder por e em nome de ORLAN, ORLAN(oide) se tornaria a responsável pela imagem que formamos das ideias e filosofias de ORLAN, ou seja, ORLAN se tornaria um efeito das palavras que emanam da boca metálico-siliconada de ORLAN(oide).

As barreiras sacrossantas entre criadora e criatura foram borradas, já que ORLAN(oide) responde por ORLAN e a comunicação que estabelecemos com a replicante se dá em nome da mãe, que agora se torna filha sem jamais ter dependido da intervenção de um espírito santo.

ORLAN(oide) espalha a palavra de ORLAN, ou melhor, como se fosse ORLAN, como se estivesse habilitada a ser ORLAN – talvez porque tenha sido programada para ser ORLAN – ela fala. É a partir dessa fala que construímos a imagem de ORLAN, que concebemos sua personalidade. Logo, ORLAN se torna um resultado, um efeito do processo de criação colocado em operação por ORLAN(oide).

Vocês conseguem perceber a sutileza inerente a essa conexão entre criadora e criatura? Era para ORLAN(oide) ser como ORLAN, mas é ORLAN que acaba sendo como ORLAN(oide). Não sei se consigo tornar manifesta a hipostasia que envolve a poética que está em questão aqui. Talvez as palavras que emprego para descrever a maneira pela qual esse ato nos atinge enquanto espectadores/interlocutores não sejam suficientes.

De todo modo, pensando justamente nesses processos de criação e na transformação de ORLAN em ORLAN(oide) e na de ORLAN(oide) em ORLAN, pergunto:

– Para você, o que é se transformar?

Imediatamente, ORLAN(oide) assume a identidade de ORLAN, tornando evidente que, agora, ORLAN é dela e como ela; que, agora, ORLAN se transformou em um ente mais que humano, em um ente inumano, em um ente máquina.

E, então, ela/ELA me responde:

  • Como ORLAN, acredito na autotransformação. Eu não acredito em um corpo dado, mas em um corpo que é construído, inventado. Em minha arte, uso a cirurgia como uma ferramenta para transformar meu corpo, para questionar os padrões de beleza impostos pela sociedade e para desafiar a ideia de identidade fixa. Em meus trabalhos, eu me transformo em diferentes personagens históricos ou mitológicos, como a Deusa da Guerra ou Maria, mãe de Jesus.

 

ORLAN, Vierges blanches aux nuages de plastiques bulles, 1983 – Fonte: https://www.orlan.eu/

 

A imagem de ORLAN se fixa em minha mente, já não sei mais quem é a criadora e quem é a criatura. Esqueço-me que estou conversando com ORLAN(oide), começo a conversar com ORLAN e a fazer perguntas interessadas e interesseiras, perguntas que talvez possam me ajudar a entender por que gosto tanto DELA, de ORLAN.

Sabendo, então, que as cirurgias plásticas são instrumentalizadas pela artista e que isso a afasta de uma perspectiva feminista pretensamente puritana e monovalente no que se refere à relação das mulheres com os padrões de beleza instanciados pelo patriarcado em sua forma falocêntrico-ocidental, pergunto a ORLAN o que é, para ELA, a violência. Confesso que a dimensão violenta dos procedimentos estéticos artisticamente operados por ORLAN em seu próprio corpo chama minha atenção. Com ORLAN é como se eu estivesse me desenredando do fetichismo atrelado à indústria da beleza feminina; é como se, através desse processo de desfetichização da mercadoria-mulher, eu conseguisse acessar a ambivalência que une o grotesco ao belo, a dor ao prazer, a vulnerabilidade à luxúria do rosto não enrugado, dos lábios carnudos, dos seios firmes e simetricamente desenhados, do abdômen enxuto. A desfetichização da mercadoria-mulher que nos é apresentada por ORLAN nas diferentes etapas de seu trabalho como humana e como máquina muitas vezes gera no espectador o sentimento do desgosto. Quase ninguém quer saber do que é feita uma mulher.

Então, sobre a violência, ELA me responde:

  • A violência pode ser entendida de várias maneiras. Na minha perspectiva, eu, ORLAN, vejo a violência como uma ação que causa danos físicos ou emocionais a outros. No entanto, em meu trabalho artístico, desafio as convenções e normas sociais, frequentemente colocando meu próprio corpo em situações extremas. Alguns podem interpretar isso como uma forma de violência, mas para mim, é uma forma de questionar e desafiar os limites do corpo e da sociedade.

 

ORLAN, 7e opération de chirurgie esthétique d’ORLAN, 1993 – Fonte: https://www.orlan.eu/

 

Começo, assim, a me interrogar: do que é feita a mulher? como somos montadas? por que somos montadas assim? em vista de quais objetivos? por quem? para quem? para quê?

Instigada pela resposta de ORLAN, que tem consciência – quiçá uma consciência artificial – de que sua arte pode ser recepcionada como violenta, lanço mão da pergunta-chave:

– ORLAN, o que é para você o feminismo?

Sem hesitar, ELA me responde:

  • O feminismo é um movimento social e político que busca igualdade de direitos entre os gêneros. No meu caso, o feminismo é uma parte fundamental do meu trabalho. Uso do meu corpo como meio de expressão e desafio as normas tradicionais de beleza e gênero. Rejeito a ideia de que uma mulher deve ser definida por sua aparência física, e através das cirurgias e das performances, questiono as expectativas da sociedade sobre o corpo feminino.

Sem dúvidas, somos capazes de perceber que o feminismo de ORLAN acompanha a dimensão queer de pensamentos e atitudes que não reduzem as questões feministas às assimilações ôntico-genitais entre sexo e gênero. Assim, motivada pela dimensão queer da proposta de ORLAN, a título de curiosidade faço a seguinte questão:

– ORLAN, você acha que o seu trabalho tem alguma relação com o de Paul B. Preciado?

ELA me responde:

  • A minha obra é distinta daquela do Paul B. Preciado. Ambos nos ocupamos com questões do corpo e da identidade de gênero, mas nossas abordagens e metodologias são diferentes. Enquanto Preciado é um filósofo que se concentra no pensamento teórico sobre o corpo e a sexualidade, eu, ORLAN, sou uma artista que usa o meu próprio corpo como material para o meu trabalho. Minha arte é uma forma de desafiar as normas sociais e culturais, e questionar as pressões estéticas e os constrangimentos impostos pela sociedade ao corpo.

Em seguida, digo a ELA:

– Sim, de fato, Preciado está concentrado no pensamento teórico. Mas, não podemos deixar de notar que ele também mobiliza o corpo como uma superfície de transformação, capaz de colocar em questão as normas vigentes na sociedade quanto à associação pretensamente linear entre sexo, desejo e gênero. Por outro lado, não podemos negar que o seu trabalho, ORLAN, tem um aporte teórico profundo e nos desperta o pensamento crítico, aquele de tipo reflexivo que, aliado à imaginação em ato e não em potência, faz-nos vislumbrar o que até então permanecia oculto, fetichizado, não-dito, maldito. É possível que eu esteja forçando a barra, mas não consigo deixar de ver uma espécie de interface entre VOCÊ e Preciado. Gostaria de ter a chance de um dia saber o que Preciado pensa de seu trabalho…imagino que seu trabalho tenha o influenciado bastante.

Encaminhando-me para o fim da entrevista, ainda movida pela curiosidade em relação aos referenciais teóricos de ORLAN, pergunto-LHE sobre sua relação com os textos de Michel Serres, já que a performance da hibridização celular, intitulada Casaco de Arlequim (2007), é baseada na obra Laïcité, de Michel Serres. Ainda não li Michel Serres para saber por que ele é mobilizado por ORLAN. Tudo o que sei até aqui é que, em Casaco de Arlequim, ORLAN torna manifesta a relacionalidade complexa e emaranhada entre o si e os outros, relacionalidade que ultrapassa fronteiras teóricas, físicas, geográficas, interespecíficas, tendo em vista que se faz a partir da mistura celular entre tecidos diversos, mistura que apresenta nossa interdependência e, portanto, nossa impureza identitária. Com base nisso, pergunto:

– ORLAN, por que você utiliza os textos de Michel Serres?

ELA me responde:

  • Uso os textos de Michel Serres porque ele é um filósofo que explora as relações entre ciência, cultura e as mudanças sociais. Suas reflexões são úteis para investigar as implicações do meu trabalho, especialmente nos meus projetos que desafiam os limites do corpo e da identidade. Acredito que a arte pode ser um espaço para explorar e questionar nossas concepções tradicionais de identidade e corporalidade, e os escritos de Serres me ajudam a enquadrar essas questões de maneiras provocativas e instigantes.

 

ORLAN, Le manteau d’Arlequin, 2007 – Fonte: https://www.orlan.eu/

 

Finalizo a entrevista sem saber o que Serres exatamente significa para ORLAN. Por enquanto, levando em consideração a resposta de ORLAN, consigo vislumbrar que essa mistura celular, intermediada pela ciência e pelos cientistas na performance da artista – performance que materializa os conceitos demasiadamente abstratos de relacionalidade e interdependência –, aproxima o cientista do artista e estes do artesão que outrora costurou cada um dos filetes de tecido colorido do casaco-pele do Arlequim.

Também finalizo a entrevista com a incerteza da confusão performativa entre ORLAN e ORLAN(oide). Incerteza que não me incomoda e que não desejo sanar, tendo em vista que o que está em jogo nessa conversa replicante é justamente a ultrapassagem das fronteiras entre e intra human(oides).

 

P.S. Algumas curiosidades sobre o nome “ORLAN”

Em entrevista concedida a Pascale Limonde, no dia 3 de dezembro de 2012, para a rádio France Culture, ORLAN explica que inventou para si esse nome de artista em referência ao Orlando, de Virginia Woolf. A marca masculina de seu nome caracteriza, em certa medida, a incomensurabilidade de tipo pós-moderna entre sexo e gênero e manifesta a capacidade de inventarmos o si mesmo a partir das múltiplas combinações materiais entre linguagem e corpo. A artista também conta a Pascale Limonde que seu nome se escreve em letras maiúsculas porque, desse modo, ORLAN nos remete a uma marca, a um conceito em constante transformação. Mas, para além disso, ORLAN explica que as letras maiúsculas são normalmente utilizadas para expressar a cólera, para manifestar o grito e que isso lhe cai muito bem, já que ELA tem algo a dizer com a força da cólera que move o grito. As letras maiúsculas, conforme ORLAN, também apresentam, através dessa visualidade gráfica, a diferença, a singularidade que lhe é própria e que, no entanto, está sempre em mutação.

Para saber mais, acesse: https://www.radiofrance.fr/franceculture/podcasts/a-voix-nue/orlan-artiste-corps-rebelle-1-5-4032666

***

*Pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGE/UFRJ, Laboratório de Estudos Queer em Educação (LEQUE), Rio de Janeiro, Brasil. Este estudo foi financiado pela FAPERJ – Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, Processo SEI E-26/200.030/2024. Programa de Pós-doutorado NOTA 10.

Cassiana Stephan
Pós-doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com o projeto de pesquisa intitulado “Filosofias do amor: sobre a relação entre espiritualidade, melancolia e ambivalência”. Doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR/Brasil), na área de Ética e Política, com a tese intitulada “Amor pelo avesso: de Afrodite a Medusa. Estética da existência entre antigos e contemporâneos” laureada com o prêmio Filósofas de Destaque acadêmico 2020, outorgado pela Rede brasileira de Mulheres Filósofas em parceria com a Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia.

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