Ruído

O carnaval contra a adoração do mal

capa: Sebastião Marinho – “Kizomba, a festa da raça”, desfile da Unidos de Vila Isabel, 1988

 

No Ruído deste mês, Gustavo Jugend fala sobre a prática do Mal e sobre como o Carnaval, em sua multiplicidade festiva, pode ter as respostas para um profundo problema social.


Todo mundo vestido?
Mas que censura!
Roupas pro alto pra brincar o carnaval!

I – A adoração do mal

Há uma passagem da tese que defendi em que afirmo que a tortura não pode ser pensada através da ideia de banalização do mal proposta por Hannah Arendt e muito utilizada para pensar fenômenos de violência de estado. Para a filósofa a prática do mal de maneira banal tem a ver com a incapacidade de seu agente de pensar do ponto de vista do diferente, de quem sofrerá a ação maléfica. Na tortura, de outra maneira, o algoz calcula nos mínimos detalhes o sofrimento de seu diferente e encontra júbilo nos resultados atingidos. Portanto sua prática do mal não é banal, mas fruto de um desejo.

O desejo de produzir o mal contra alguém foi extensamente pensado por Freud e está no centro da psicanálise das neuroses. Permita-me resumir de maneira um tanto excessiva: em O estranho Freud reutiliza uma ideia lançada em Totem e tabu para, entre outras coisas, entender os medos infantis. Medo de monstros, medo da escuridão, medo de ficar sozinho, etc, etc, são, segundo o autor, produto da onipotência do pensamento; isto é, pela incapacidade infantil de limitar a existência do imaginado em contraposição ao percebido pelos sentidos, a criança teme tudo que lhe ocorre em pensamento. E pelo medo pode surgir também o desejo de vingança, o desejo de produzir o mal. Ora, nesse rastro Freud atribui à castração a vitória dos sentidos contra o imaginado e relega os medos infantis ao inconsciente através do recalque. Recalcados, esses medos passam a atuar na produção de sintomas, se integram à neurose.

Anos depois Freud haveria de pensar os efeitos desse mecanismo na vida das comunidades europeias. Faltando menos de uma década para a segunda grande guerra, evento no qual o iluminismo atingiria seu ápice ao mesmo tempo que ocasionaria seu oposto – como bem apontado por Horkheimer e Adorno – o psicanalista edita o Mal-estar na cultura. Ali, um Freud muito menos otimista que outrora constata que há um resto de agressividade, de pulsão de morte, que não se resolve individualmente e que encontra caminho político. Para evitar a guerra de todos contra todos, os membros de uma comunidade renegam esse desejo destrutivo ao mesmo tempo que o delegam a outrem. Assim mantém-se a paz de um país enquanto se envia soldados para tentar destruir outro. Portanto, para Freud, o desenvolvimento da sociedade iluminista cumpre metade do seu propósito: cria um ambiente de paz entre compatriotas, mas torna a guerra um contraponto inevitável.

Mas no brasil essa história tem outro caminho e desfecho. Importamos a cá a ideia europeia de que a civilização se fundamente em uma unidade nacional. Com a diferença de que isso foi feito, ou sem levar em consideração, ou tentar adequar a tal preceito às particularidades, às diferenças que o país carrega em relação à europa. São exemplos eloquentes disso, entre tantos, o livro Casa-Grande & senzala no qual Gilberto Freyre tenta acomodar a variedade étnica brasileira em um único propósito, como se fossem partes que resultam em um todo; e também quando, em 1937, Getúlio Vargas queimava as bandeiras de todos os estados federados enquanto hasteava a do brasil. Vargas não estava somente dando um recado a São Paulo. Também estava apontando para o desejo de que uma geografia tão imensa, que foi repartida em mais de 20 estados, se ordenasse por um governo central.

O resultado não poderia ser outro: o pacto civilizatório que nunca se efetivou produziu seu oposto pelo seu fracasso. Os abismos entre as etnias e as classes sociais se aprofundaram, bem como as implicações geográficas ligadas aos processos imigratórios e, claro, o ódio de gênero. Na falta de uma sociedade que pudesse se unir em torno de um inimigo comum – o que já seria ruim – , o tecido social brasileiro se despedaçou em zonas de conflitos internos cujas fronteiras são demarcadas por violências com tipos de crueldade que indica que há mais que um sentido de proteção em seus processos; há regozijo. Daí as tentativas de populares de classe média de linchar ladrões de celulares que tanto houveram na década de 10 deste século; ou os comandos políticos para a polícia “mirar na cabecinha”; ou mega empresários que financiam esses mesmos políticos; ou as maneiras pelas quais jovens brancos incendeiam um indígena na rua; ou traficantes que decapitam devedores de longa data; ou seguranças de supermercados asfixiando jovens negros; ou astros do futebol que praticam estupro e depois “perdoam” suas vítimas; ou latifundiários que escravizam retirantes; ou líderes religiosos que prometem o inferno para homossexuais; ou um presidente que faz da arma seu símbolo, da unidade nacional e obediência a deus o seu lema.

O mal no brasil não é banal; é sacrificial. É o sacrifício do diferente, minimamente diferente, que serve para manter os medos e os ódios intactos. Essa adoração do mal ainda não nos levou para a guerra de todos contra todos. Mas a cada dia nos aproximamos mais.

II – O carnaval contra adoração do mal

Para não terminar esse texto sem um aceno de esperança, há ainda a tarefa de apontar um caminho pela arte. Portanto, acredito que se deva procurar noutra direção que não a dos projetos europeus, mas naquilo que nossa variedade étnica aprofundada pela geografia produziu de mais potente: a arte popular. Talvez a arte popular seja o brasil que pensa a si mesmo. E se isso é assim, então a Marquês de Sapucaí, quando produz o encontro de suas diversas formas se transfora – como diria Fábio Fabato – em divã nacional. Nela, no final dos anos 80, em plena euforia constituinte, três escolas de samba olharam para alguns setores sociais e pronunciaram manifestos políticos através do que são, e não do que deveriam ser segundo um planejamento universal.

Mocidade Independente de Padre Miguel desfila Tupinicópolis em 1987

 

Em 1987 a Mocidade Independente de Padre Miguel desfilava uma ficção científica que fazia do país inteiro Terra Indígena retomada. Como diz seu samba:

E a oca virou taba
A taba virou metrópole
Eis aqui a grande Tupinicópolis

Se a Mocidade apontou para um futuro, no ano seguinte a Unidos de Vila Isabel propôs um banquete conclamado desde a ancestralidade africana a ser dividido com os povos e cantou:

Neste evento que congraça
Gente de todas as raças
Numa mesma emoção

Esta Kizomba é nossa constituição,
Esta Kizomba é nossa constituição.

A Kizomba de Vila Isabel em 1988

 

Se uma cantava o enlace com o futuro e outra com o passado, em 1989 a Beija-Flor de Nilópolis cancelava futuro e passado na instauração de um presente da festa. E para a festa a escola convocava, como se lê em sua segunda alegoria, logo após o famoso Cristo Mendigo:

Atenção mendigos, desocupados, pivetes, meretrizes, loucos, profetas, esfomeados e povo de rua: tirem dos lixos deste imenso país restos de luxo… Façam suas fantasias e venham participar deste grandioso Bal Masqué.

Ratos e Urubus desfilam como Beija-Flor em 1989

No final dos anos 80 essas três escolas notaram que índios, negros e marginais urbanos não estavam sendo olhados em sua circunstância em mais uma tentativa de unificar a nação. Elas não foram ouvidas e o tempo lhes provou corretas. Mas talvez ainda haja tempo.

 

  • Este ensaio é uma adaptação do texto apresentado na defesa da tese de doutorado Loucura e sobrevivência: o papel do narcisismo em mulheres após a tortura.
Gustavo Jugend
"eu sou como eu sou / agora / sem grandes segredos dantes / sem novos secretos dentes / nesta hora" - Torquato Neto

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