Ruído

Eu e Ela

capa: Romeu + Julieta (1997), de Baz Luhrmann


 

Vontade de sair daqui! ela me diz.

Você não tem vontade de sair daqui? ela me pergunta.

Olho bem para seus olhos perversos, que há tempos me maltratam com um desprezo ruidoso, desprezo que me invade e que me faz estremecer, vacilando entre o medo e o gozo que se goza quando se ama um amor doentio.

Me extasiando com as memórias incandescentes de nosso passado ainda recente, continuo a olhar para o verde filtrado de suas pupilas.

Não tenho vontade alguma de responder.

Você não vai me responder? ela me pergunta.

Tomo coragem e penso enquanto a fito: eu não quero sair daqui; aliás quem precisa sair daqui é você. Você precisa sair de mim e eu, eu preciso me esvaziar do ruído do seu olhar que continua a destilar veneno em minha alma. Nunca mais deixarei que seus olhos gritem comigo. Nunca mais permitirei isto. Agora é a hora, vá embora!

Ao silenciosamente expulsá-la, percebo que ainda olho fixamente para seus olhos venenosos. O veneno, quando age em meu organismo, alastrando-se num só instante por todas as veias e artérias, faz com que meu corpo rapidamente se alivie da respiração. Normalmente, na normalidade de nosso amor doente, seguro a respiração para tentar encontrar na falta (de oxigênio) um prazer ainda mais potente, um prazer que seja capaz de justificar nossa dorida união.

Mas, de repente, olhando para ela, me arrependo; sinto remorso por ter tentado expulsá-la de minha alma. Por isso, decido abaixar minha cabeça.

Penso que talvez a culpa seja minha, que não é ela que me inunda, mas que sou eu que mergulho na imensidão esverdeada do seu olhar venenoso, pois como o mar, meu amor é profundo e minha entrega desconhece fronteiras. Então, se eu abaixar a cabeça para nunca mais olhar, para nunca mais olhar para ela, talvez possamos continuar a viver nossa magoada comunhão.

Repudio o olhar que olha para ela e, mesmo assim, ela se aproxima de mim. Sinto medo. Minhas extremidades estremecem. Ela está tão perto de mim que sou capaz de ouvir as batidas aceleradas do seu coração. De forma descompassada ela me diz: está cada vez mais difícil de conviver com você. Você age como se eu fosse um monstro.

Ainda com a cabeça baixa, levo minhas mãos em direção aos meus ouvidos. Penso que talvez, se eu parar de ouvir o canto inebriante da sereia, possamos continuar a viver esta nossa comunhão. Para que ela fique, preciso apenas bloquear a passagem de ar que propaga em mim este veneno de tipo sonoro, disseminado tanto por seus olhos quanto por sua boca.

Ela percebe meu gesto, meu desdém que tem como objetivo a boa e grata convivência matrimonial. Irritada, ela grita: Você não tem vontade de sair daqui? Me responda! Você não tem?

O grito bate em minhas mãos e ricocheteia, reverberando nos quatro cantos do único cômodo de nossa casa, como a pólvora com pressa detonada se precipita ao sair do ventre do letal canhão.

Ainda com a cabeça baixa e com os ouvidos tapados, escuto o som abafado dos vidros que se estilhaçam à medida que a cólera dela se intensifica.

***

Sem mais nem menos, os ruídos param. Ergo minha cabeça e destapo meus ouvidos. Instantaneamente percebo que ela não está mais ali. Ela partiu, deixando apenas alguns rastros de sangue verde espalhados pelo chão e sobre a cama. Intuo que ela tenha se cortado – cortado os pés ao andar sobre os cacos e cortado as mãos ao tentar juntar os cacos. Não me lembro de tê-la ajudado a juntar os cacos, mas vejo que minhas mãos também estão cortadas e que meus pés estão dilacerados. No entanto, a cor do meu sangue é diferente do dela. Meu sangue é vermelho e não verde, como o dela.

Me aproximo de nossa cama e, além dos rastros verdes, percebo algumas gotas de sangue vermelho entre os lençóis brancos que cobrem o colchão e os estilhaços de vidro que cobrem os lençóis.

O cansaço é forte e a dor é cortante. Sinto a necessidade de me deitar. Afasto os cacos que estão do meu lado da cama, fazendo um monte cintilante que deixo acumulado no lado que era dela. Me deito. Durmo.

*****

Abro meus olhos, vejo a parede que fica colada à cama. Viro-me para o lado dela e não a vejo em nosso leito de morte. Esta noite, ela não dormiu comigo. Esta noite, ela partiu.

Não sei dizer por quanto tempo dormi. Só sei dizer que ela partiu.

E eu digo “Ela partiu” na tenebrosa esperança de que ela jamais voltaria, de que ela jamais voltará.

Minha esperança é temerária porque no fundo, bem lá no fundo do verde filtrado de minhas pupilas, sei que o amor é um vício e que o que está em jogo aqui, no meu caso, no caso do meu amor, não é precisamente o vício pelo prazer, mas sobretudo aquele pela dor.

Então, mais uma vez fecho meus olhos e digo “Ela partiu” na tenebrosa esperança de que um dia ela voltaria, de que um dia ela voltará.

Como um canto inebriante, esta frase conjugada no passado e atribuída a Ela (o sujeito-objeto de uma antiga união) entra em meus ouvidos e se alastra num só instante por todas as minhas veias e artérias. Pela primeira vez, provo o gosto do meu próprio veneno, do fel que por amor ou por loucura me prende à espera indecisa de que um dia ela volte para jamais voltar. Por fim, antes de padecer para toda a eternidade, grito:

 

Meu único amor, nascido de meu único ódio! Cedo demais o vi, ignorando-lhe o nome, e tarde demais fiquei sabendo quem é. Monstruoso para mim é o nascedouro desse amor, que me faz amar tão odiado inimigo.

William Shakespeare, Romeu e Julieta,
Primeiro Ato – Cena V. Um salão na casa de Capuleto

Cassiana Stephan
Pós-doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com o projeto de pesquisa intitulado “Filosofias do amor: sobre a relação entre espiritualidade, melancolia e ambivalência”. Doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR/Brasil), na área de Ética e Política, com a tese intitulada “Amor pelo avesso: de Afrodite a Medusa. Estética da existência entre antigos e contemporâneos” laureada com o prêmio Filósofas de Destaque acadêmico 2020, outorgado pela Rede brasileira de Mulheres Filósofas em parceria com a Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia.

You may also like

Leave a reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

More in Ruído