Ruído

Quando o Si encontra o Outro

imagem: Yayoi Kusama – Infinite Obsession

 

Em seu segundo texto escrito para a coluna Ruído, Cassiana Stephan investiga a memória e o afeto, as experiências dos ruídos internos e dos ruídos externos, o encontro do Si e o encontro do Outro. Texto inédito para a R.Nott Magazine.


 

 

Quando saio de mim na expectativa de encontrar o outro, sinto os ruídos das luzes multicoloridas que se transformam em som e faço a experiência pouco sublime do interior que se exterioriza.

Nas ruas, andando até chegar a você, me deparo com os gritos agudos da dor que fazem com que eu me veja na alma de cada um destes espíritos decaídos. A dor do outro se torna minha por alguns milésimos de segundos. Digo para mim mesma “Não posso fazer nada. Sinto muito, mas não posso fazer nada”. Perante a angústia do outro que invade o espaço inócuo de minha alma, digo que sinto muito. Talvez o sinto muito seja a desculpa esfarrapada de quem está envolvido demais com a existência de uma vida apática. Sei que nesse momento minto para mim mesma e quando me pego na minha própria mentira, a dor do outro se torna uma espécie de burburinho sombrio em meu estômago vazio que está prestes a se encher.

Sinto muito, quer dizer, sinto uma pontada em meu estômago. Posso escolher não sentir a dor do outro, então quase que espontaneamente, talvez em razão de um instinto egoísta e demasiado humano de autopreservação, desvio meu olhar e tapo meus ouvidos. Não quero ver o que ouço e não quero ouvir o que vejo: cenas cotidianas de violência sem fim.

Então, penso que preciso me recompor para te encontrar. Preciso me recompor em meio às trilhas sonoras ultraviolentas que explodem meu peito como uma bala que se estilhaça na cabeça do outro do outro do outro do outro. Do outro que está tão distante de mim. Qual é a relação deste outro com você?

Não suporto mais as trilhas sonoras das ruas. Sim, sei que somos todos vulneráveis e que devemos criar redes de solidariedade. Sei de tudo isso, mas também sei que nossos laços são extremamente egoístas, libidinais, interesseiros e mesquinhos.

Um menino se aproxima de mim e pergunta “Tia, compra um chocolate pra mim?”. Não tenho dinheiro algum, nada vezes nada. Neste momento, me recordo que geralmente é você quem paga o almoço para mim, porque sabe como é, estou desempregada. Não há vagas para filósofos!, dizem as empresas. E quando eles dizem isto, sei que querem dizer que somos inúteis. Mas bem, filosofia não é profissão, é modo de vida.

Em seguida, olho para o menino que me interpelou e respondo que não tenho nada, mas digo para que ele me espere pois vou ver o que posso fazer.

Avisto uma pessoa mais ou menos da minha idade, uma pessoa que não parece ser má – caso raro hoje em dia, para mim quase todas as pessoas parecem más.

Me aproximo dele, da pessoa, me coloco ao seu lado na borda da calçada, entre a faixa de pedestres e o semáforo. O menino com vontade de comer chocolate está do outro lado da rua, na esquina, e ele me observa.

Sutilmente toco no ombro dele, da pessoa. Ele se vira e olha diretamente para meus olhos com um olhar assustado de quem tem medo de ser tocado. Permanecemos em silêncio por alguns instantes. A cena parece se congelar neste plano sequência que nos dá a impressão do tempo presente. Uma buzina super alta interrompe este triângulo amoroso. E então digo “Moço, você poderia me ajudar?” Ele hesita, se afasta um pouco de mim, me observa desconfiado de cima para baixo e de baixo para cima. Ele finalmente diz “Não sei se posso te ajudar…” Eu explico que fui interpelada pelo menino que está lá do outro lado da rua e que este menino quer um chocolate. “Eu não tenho dinheiro para comprar um, então pensei que talvez você tivesse.” Ele, a pessoa, continua olhando para mim e sem saber o que falar, digo “Você não sente essa vontade de vez em quando? Vontade de comer um chocolate? Sei que não vamos salvar ninguém com chocolate, mas talvez pudéssemos satisfazer esta falta imediata que faz com que o outro que sente a falta nos interpele no meio da rua. O que você acha?”

Ele me diz “Tudo bem, vamos lá, eu compro o chocolate.” Com o chocolate em mãos, escuto o sino da igreja que toca no meio-dia, na metade do dia de todos os que se entrecruzam nas ruas sem jamais se conhecerem. Entrego o chocolate ao menino e digo aos meus novos amigos, que provavelmente nunca mais encontrarei, “Estou atrasada, preciso ir. Muito obrigada e boa sorte!”
Corro, atravesso as ruas correndo sem olhar para os lados, sinto saudade e fome, mas também sinto a vontade de não sentir – seria isto a pulsão de morte? Não sei… Continuo correndo. Escuto o uivo de um cachorro que talvez tenha sido atropelado na via rápida. De imediato começo a chorar porque ao escutar seu grito vejo a cena de frente. Não aguento mais me deparar com o ruído da dor.

O carro do cara que atropelou o cachorro está parado no meio da pista. Algumas pessoas ao redor falam “Meu deus!” “Graças a deus que não foi uma criança!” “Imagina se esse cara atropela alguém!” Em meio ao clamor humano por deus, eles não percebem que o cara atropelou alguém. Eu permaneço calada perante a morte do outro.

Percebo que o cachorro já se foi, portanto, ele já não sofre mais. Ao ser atropelado, ele parece ter vomitado um pedaço de chocolate que alguém lhe dera. Depois de um tempo ali, olhando para ele, decido abandonar seu cadáver aos abutres que o rodeiam sem perceber a importância de sua existência no mundo.

*

*

*

 

Continuo caminhando e penso que nunca mais quero sair de mim mesma. Quero me prender a mim mesma até me sufocar, me afogar com a minha própria saliva ácida e assim escapar daqui, não de dentro de mim, mas do fora que é lá fora.

Mas antes de sair do fora, preciso te encontrar e te devolver teus discos. Trouxe os três mais barulhentos comigo. Eles estão dentro do meu casaco de lã verde. Nem está tão frio assim, mas decidi usar este casaco porque não tenho muitas opções, porque (e você sabe muito bem) não gosto de andar de bolsa – adereço feminino com o qual não me identifico. Gosto de bolsos, pois são mais práticos. Bolsos internos e bolsos externos que estão em contínua comunicação.

Seus discos não são tão grandes assim, são aqueles pequenos discos que rodam em vitrolas gigantes. Espero que me espere chegar, “Já estou chegando!” – falei sozinha em voz alta na tentativa de que este som se propagasse e te atingisse em cheio, impedindo-o de ir embora.

Mas logo minha memória foi preenchida de novo com o grito de morte do cão atropelado. Meu coração acelerou e engoli o choro. Eu não sei como passo com tanta rapidez de um estado a outro, da dor compartilhada ao pragmatismo do dia a dia. Será que sou bipolar? Acho que isto não é bipolaridade, talvez esteja longe de ser bipolaridade. Está mais para indiferença social mesmo, porque faz tempo que não me engajo com o sentimento do mundo, faz tempo que não me concedo o direito de parar para sentir. Na verdade, para ser honesta comigo mesma, eu nem quero mais sentir. Gostaria de sentir o nada, pois já me desiludi demais achando que um dia poderia sentir tudo.

Já está escurecendo. Eu ainda não comi. Meu estômago está roncando cada vez mais alto. As luzes artificiais que compõem o cenário da noite já estão começando a se tornar mais vibrantes. Passei em frente ao rio no qual aquela moça, que um dia foi nossa vizinha, se jogou. Aposto que você nem se lembra mais desta tragédia que acometeu nosso condomínio. Talvez ninguém se lembre. Senti um frio na espinha e pensei “Será que sou capaz de fazer algo assim em público? Sempre imaginei que morreria de fora para dentro e não de dentro para fora. Não sei se quero que minha morte seja um espetáculo público, mas tampouco gostaria que ela fosse uma circunstância privada.” Eis a aporia:

Morrer na exterioridade, expondo-se à comunidade para que todos saibam quem você é, nem que seja por apenas alguns dias, até que os jornais parem de noticiar a sua morte cadavérica;

Ou

Morrer na interioridade do si que engole dezenas de comprimidos no silêncio de uma casa com vedação acústica, na qual o fora não entra?

Para mim, ambas são atualmente opções intangíveis. Antes de fazer uma escolha preciso entregar teus discos, porque não aguento mais olhar para eles, toda vez que os vejo escuto as músicas barulhentas que nos uniram em nossa adolescência tardia.

*

*

“Estou quase chegando!”, repito mais uma vez. “Faltam duas quadras”, digo ofegante.

Alguém grita meu nome, olho para trás e vejo um amigo de infância que acabou se tornando teu amigo também. Ele não sabia que não estávamos mais juntos. Falei que estava tudo bem, que isso acontece, que a distância às vezes é a melhor forma de selar o amor. Falei na tentativa de consolá-lo, então tive que mobilizar todo o meu aparato filosófico sobre o amor na distância, discurso este que agora não faz sentido nenhum para mim.

Ao terminar a retórica sobre o paradoxo do amor, dei um abraço bem forte em nosso amigo e disse que precisava te encontrar para devolver teus discos: “Já estou atrasada, preciso ir.”

“Vai lá…”, ele me disse. “Se tiver afim, volta aqui depois pra gente conversar.” Acenei com a cabeça que sim, mas sei que não vou voltar porque tenho pressa de voltar para mim. Além disso, sei que daqui duas horas ele estará completamente bêbado na frente daquele mesmo bar no qual nos encontramos desde sempre.

*

*

Sinto um aperto no peito. Cheguei. Você quis me encontrar no lugar mais decadente da cidade. Permaneço parada em frente ao estabelecimento que emana uma luz verde profana, suficientemente medúsica para nós dois.

Entrei. Me misturei à luz e me perdi em meio ao som alto. Não conseguia te encontrar. Passei por todas as mesas à beira da pista de dança. Não te vi. Pensei “Será que está dançando? Não é possível…” me embrenhei na multidão que aglomerava na pista. Senti a vibração sonora percorrer meu corpo. Parecia que eu tinha engolido aquela música.

No caos da multidão, meu bolso interno se abriu e de repente seus discos caíram. Tentei recuperá-los entre as solas de sapato imundas e entre os pingos de cerveja que formam uma cola malcheirosa no chão.

Teus discos já tinham sido completamente pisoteados.

Fiquei tão constrangida e irritada com tudo isso que comecei a sentir calor. Em busca de ar, olhei para cima e lá estava você, com o corpo completamente inclinado no corrimão do segundo andar. Você me observava com seu olhar profundo, cheio de cólera e tristeza contra mim. Era como se eu estivesse sob o jugo de um deus perverso que faz com que eu me sinta culpada por não acreditar mais em sua providência.

Decido subir as escadas e te encarar de frente, na igualdade do olhar desigual, igualdade que deve ser exigida em qualquer tipo de relação conjugal. Mas, quando finalmente consigo me desvincular da multidão para te encontrar e te entregar os cacos que sobraram de teus discos, você já não está mais ali.

Te procuro nos banheiros, abro porta por porta. Me deparo com cenas estranhas, mais estranhas do que nós dois. Ainda no andar de cima retorno à mesa na qual presumi que você estivesse. Largo meu casaco e os pedaços de disco em cima desta mesa. Já estava cansada de segurar tudo com o braço esquerdo. Apoio meu queixo sobre o casaco apoiado na mesa e olho fixamente para a luminária que enfeita esta tábua redonda de madeira maciça.

A música continua tocando com toda a força.

É absurdo, mas sinto a presença daquela multidão em mim.

Ainda olhando para a luminária que compõe a luz esverdeada deste ambiente infernal, me pergunto “Por que te perdi de vista?” Esta reflexão permanece latente por vários minutos, até o momento em que percebo um guardanapo de papel rabiscado embaixo da luminária que adorna a mesa. Puxo o guardanapo com cuidado para não rasgar. Li:

“Só porque não estávamos mais apaixonados, você não precisava ter feito isto comigo.” A palavra comigo foi contornada tantas vezes que podíamos perceber um pequeno furinho na letra c. Imediatamente entendi a revolta, entendi que o amor está vinculado à revolta. O amor tranquilo é uma falácia. Quem ama não se tranquiliza.

*

Apoiei meus cotovelos na mesa, coloquei minhas mãos em cima da cabeça. Continuei encarando este bilhete de amor, que agora estava em cima do meu casaco de lã. Acho que permaneci assim, estática, por horas.

*

*

*

*

Comecei a sentir frio. Me afastei da mesa, me levantei, olhei para os lados. O bar estava vazio. Tirei o bilhete de cima do casaco e o coloquei junto com a pilha de cacos dos teus discos. Vesti meu casaco. Procurei por minhas chaves. Quero voltar para mim mesma e nunca mais sair de mim. Recolhi os cacos e rasguei o bilhete para transformá-lo em caco também. O meu bolso interno estava furado, então coloquei tudo nos bolsos externos. Desci.

*

Abri a porta da boate. Já havia amanhecido. Estava frio e o céu era cinza. Coloquei minhas mãos no bolso e ali te encontrei despedaçado. Me apropriei de seu amor da mesma forma que me apropriei de sua revolta. Apertei com todas as forças os cacos que se misturavam em meu bolso. Até que um deles perfurou a palma de minha mão e a ela se integrou.

Me recordei do tempo em que ainda andávamos de mãos dadas e assim me dei conta de que te perdi de vista ao toque do sino da igreja, daquele sino ruidoso que irrompe no meio do dia, que irrompeu no meio daquele dia:

– Aceito.

– Aceito.

Fim.

Cassiana Stephan
Pós-doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com o projeto de pesquisa intitulado “Filosofias do amor: sobre a relação entre espiritualidade, melancolia e ambivalência”. Doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR/Brasil), na área de Ética e Política, com a tese intitulada “Amor pelo avesso: de Afrodite a Medusa. Estética da existência entre antigos e contemporâneos” laureada com o prêmio Filósofas de Destaque acadêmico 2020, outorgado pela Rede brasileira de Mulheres Filósofas em parceria com a Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia.

You may also like

Leave a reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

More in Ruído