imagem: Jacques Prévert – La lune
I. Isto não é filosofia (ceci n’est pas une pipe)
Um dia você me contou o que sentia quando se colocava em frente ao mar, variando as trilhas sonoras que te fazem vivenciá-lo diferentemente.
Você me disse que suas trilhas sonoras se misturam aos ruídos do mar, projetando-te em direção a um passado esquecido pelos ventos enfurecidos que arrastam consigo a memória; projetando-te em direção ao presente imediato que revela, com a mesma violência das ondas que quebram na costa, sua condição neste mundo.
Agora vou te contar o que me aconteceu no dia em que me deixei ser levada pelo mar. Lá estava eu, muito próxima do limite espumoso, da beira, da beirada, do parapeito do mar do qual nasceu Afrodite. Na expectativa de deixar aquele ruído entrar em mim até se tornar intimamente silencioso, transgredi o limite; na verdade, deixei-me transgredir.
As ondas quebravam em uma sinfonia estrondosa, o vento zunia com agonia ao lado das imensas vagas que se transformavam em espuma quando tocavam meus pés. Do parapeito de areia no qual me equilibrava, observava o horizonte maravilhada.
*
(Você me pergunta: – Mas, o que isto significa? O que você fez?)
É… talvez eu não esteja sendo clara…, mas o fato é que meu frenesi não tinha uma explicação. Ele surgia de dentro do meu peito que, naquela época, estava prestes a implodir.
II. A implosão
– Estou pronta! gritei ao mar. – Estou pronta! Você já pode me levar, me engolir, me afogar… E subitamente a onda me abraçou. Quando senti seu empurrão, cerrei meus olhos com muita força. A água salgada perfurou meus tímpanos, fechou minha glote. Eu não conseguia mais falar. Nesse momento, mergulhada nas profundezas do mar sagrado, silenciei-me. Meu coração acelerava toda vez que eu pensava: estou no fundo do mar, nesse beco sem saída, e já não escuto mais nada, já não consigo mais gritar. Que amor é este?
III. Isto não é filosofia (ceci n’est pas une pipe)
Como te disse, pulei no mar sem olhar para trás. Cometi este ato, ao mesmo tempo infame e audacioso. Silenciei-me na expectativa de observar aquilo que o mar guardava no fundo de sua alma. Neste vácuo sonoro, entretinha-me com a minha própria paz. Nestas horas fugazes, isentei-me de mim mesma, da caótica e sufocante experiência da vida vivida para a morte. Nele, no mar, no silêncio de sua intimidade, silêncio que na superfície se torna estrondo, dei-me conta de que não há saída e enfrentei aquilo que tanto temia: a pulsão de vida de um coração mortífero.
IV. Ainda no mar
Refugiei-me no mar até o ponto em que ele decidiu me expulsar. Um dia, ele me disse que meus pensamentos eram muito pesados e que ele não aguentava mais me carregar. Ele disse: – Agora que seus tímpanos já estão curados, é tempo de você me escutar. Não consigo mais te amar, seu silêncio pesa em minha alma, mortifica a paz de meu espírito oceânico. É preciso que você volte a falar, que você volte a flutuar para, então, retornar à beira, à beirada, ao limite espumoso.
Insistentemente eu gesticulava o “não”. Em desespero, contorcia-me, debatia-me no intuito de expressar “não, não quero voltar! Não tenho mais espaço na terra, para mim já era, não quero mais!”
Minha angústia deu ensejo a grandes redemoinhos nos recônditos do mar. Uma guerra se instaurava entre ele e eu. Ele tentava me empurrar para a superfície e eu insistia em permanecer no fundo, lá no fundo de sua alma.
Nunca imaginei que o perturbaria de tal maneira. Nunca imaginei que meu silêncio o perturbaria. Na busca por minha própria paz, na busca pelos vazios sonoros que me afogam no mar altissonante, silenciei-me para não me incomodar com o incômodo que desperto nos outros.
Mas até mesmo meu silêncio incomoda, a ele e aos demais. Quem diria…? Eu não diria, jamais diria que meu silêncio seria o estopim deste conflito majestoso.
V. Na areia
Em uma violenta temporada de furacões marítimos, ele finalmente me expulsou. Meu retorno à superfície foi doloroso. À medida que dela me aproximava, ouvia com toda a vivacidade do mundo os gritos de rancor daquele que um dia me amou.
Deitada na areia, na vasta faixa de areia que me expunha ao olhar pudico de todos os que passavam, vomitei aquela água engasgada que não me deixava falar. Uma grande quantidade de água salgada saía de meus pulmões com um gosto amargo.
Ali permaneci até que o mar se acalmasse, até que seus estrondosos gritos se perdessem no horizonte.
VI. Ainda na areia daquela praia
O cansaço fechou meus olhos. Fechou-lhes para que eu não encarasse os segredos do mar que um dia me acolheu em sua imensidão; fechou-lhes para que eu não visse o olhar daqueles que olhavam meu corpo abatido estirado no chão.
Eu escutava as pessoas dizerem: – Olha, um cadáver! O meu ímpeto era o de abrir os olhos e retrucar: – Vejam, estou viva, não sou apenas um cadáver. Posso provar que não sou apenas um cadáver. Cadáveres não falam e, escutem, estou falando, falando com vocês.
Mas, para evitar este ímpeto, eu apertava ainda mais meus olhos, pois sei que no fundo ninguém se importa.
Assim, eu voltava a dormir… entre os murmúrios dos transeuntes e os estrondos longínquos do mar que acabara de me abandonar na praia, naquela mesma praia em que havíamos entrecruzado nossas extraordinárias presenças.
*
(Você deve estar se questionando: por quanto tempo seu corpo permaneceu ali, estirado na poça avermelhada que tingia a areia daquela praia?)
Não sei ao certo, talvez por algumas horas…até o momento em que o sol se abriu.
VII. Sob o sol
Paulatinamente despertei…despertei com o toque radiante do sol que percorria a extensão de minha pele. Entremeios, escutava a risada das crianças que brincavam naquele mesmo limite espumoso, sabe? Na beira, no parapeito do mar do qual nasceu Afrodite e do qual decidi me jogar, lembra?
Foi o sol, foi ele quem me fez levantar. Ele me perguntou, chacoalhando meus ombros com seu toque cintilante, que de tão cintilante chegava a queimar minha pele: – Você está bem? Você está bem? Qual é seu nome? O que te aconteceu?
Meus ouvidos engoliram estas palavras cheias de oxigênio. Com esta carga sonora pude respirar profundamente, abrir meus olhos e dizer: – Sim. Estou bem. Está tudo bem.
*
E foi entre a desilusão de um afogamento frustrado e a insolação de um resgate inesperado que surgiu a seguinte conclusão: isto não é filosofia (ceci n’est pas une pipe), mas apenas um amor de verão.