Visuais

Como liberdade, a arte é uma senha

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Imagem: Manet – Olympia (1863)

[/vc_column_text][vc_column_text]A dicotomia entre a postura revolucionária da arte e a burguesia encantada que a consome. Ainda existe algum distúrbio que a resta à arte investigar, existe ainda o que subverter? Nossa falta de memória indica: talvez exista sim. Texto por Marlon Anjos.


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“O pensamento revolucionário suporta qualquer coisa, menos o próprio sucesso. Se a história, de fato, se formalizasse por narrativas, já estaríamos, tal como Alexandre, o Grande, chorando por não haver mais nada para ser conquistado, ou melhor, no caso da arte, subvertido.”

[/vc_column_text][vc_empty_space height=”52px”][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]“Pintar exige mais do corpo que da mente e é trabalho executado, principalmente, por gente ignorante”, afirmou Mario Equicola (1470-1525), contemporâneo de da Vinci. Sabemos que a pintura foi subjugada por ser uma prática realizada com as mãos. Igualmente o trabalho do escultor foi desprestigiado. Leonardo, aquele que defendeu que a pintura é a maior de todas as artes, inclusive a medicina, compara o trabalho com malho ao cinzel ao dos pedreiros. Diz a lenda que Michelangelo apresentou o gigante Davi entre 1504-5 para demonstrar que Leonardo não reinaria mais sozinho em Florença, e dessa forma, aproximou o trabalho do escultor ao do pintor. Isso nos mostra que ambos estavam convencidos do primor existente em suas tarefas, e dessa forma fica evidente que ambos não deram muita bola para Equicola, pois estavam mais preocupados com as probidades das suas áreas de execução do que com a argumentação restritiva de um dos mais admirados estudiosos no período do renascimento.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Durante muitos séculos os artistas se dispuseram a demonstrar que as artes manuais eram produzidas pela intelectualidade, e não apenas pelas suas mãos. A motivação em tornar a prática artística como arte liberal não provinha apenas do prestígio aristocrático que seria depositado ao pintor ou ao escultor, e tampouco ambicionava acabar com a rivalidade entre a pena e o pincel. Distanciá-las das artes mecânicas e torna-las artes liberais permitiu a fuga do pagamento de imposto, semelhantes à alcabala – imposto depositado sob a tela, e não sob a criação – ou seja, menos imposto, mais liberdade. Contudo, seja qual for a motivação em provar que as obras eram realizadas pelo intelecto, associar objetos à inteligência parece ser uma forma de protegê-los, e licenciar o ato criador.

 

As acusações de que obras de arte foram realizadas por ignorantes apenas não são risíveis porque são contrárias à perspectiva atual. Afinal, revertemos tão completamente a visão dos nossos antepassados que tudo que paira no ar foi para compensar a crença que saturava um período passado. Cada época possuiu a sua dose de liberdade, assim como seu teor de controle, e depois de Courbet transformar o sorriso de Mona Lisa em um ícone vertical, parece que nada mais nos restava fazer.

 

Se a liberdade se tornou viral ao capacitar o trabalho artístico dotado de subjetividade, a última barreira seria a possibilidade de produzir obras indesejáveis. Muitas obras de arte foram consideradas feias, de mau gosto, sem arte. Contudo, como já disse a crítica de arte Lucy Lippard: “nada permanece como sendo feio por muito tempo no cenário da arte hoje em dia”. Sabemos que Roy Lichtenstein, ao escolher reproduzir os gibis cômicos dos anos 1950, estava motivado em produzir algo indesejável. “Era difícil escolher uma pintura suficientemente indigna para que ninguém quisesse pendurá-la na parede. Todo mundo estava pendurando tudo… A única coisa que todos odiavam era a arte dita comercial; aparentemente também não a odiavam o bastante”. É um momento mágico quando trabalhos arrogantes explodem em ineditismo e passam a fazer parte dos salões de arte como se nunca tivessem sido separados, mas apenas é melhor perceber que no mercado da arte nada é invendável e ou inconsumível. Parece que tudo, com o tempo, passa a ser artístico, ou, talvez, passemos a olhar como se fossem. Esse apetite em reconhecer estranhos como arte parece não possuir limites, não importa se as obras estão escondidas em algum cofre, ou foram expostas nas ruas, ou mesmo se é exposta em livros. Não importa se outrora foram julgadas como tolas e sem critério. Não importa a idade ou a origem, tão logo a obra é exposta, alcançará um preço que será ampliado pelo mercado, e tudo será relevante para ser colecionado e admirado. Tal que André Gide definiu muito bem o que é ser artista: “estar no nível das estranhezas de seu tempo – aí reside a razão de ser do artista”, disse Gide a pintores e escultores, que o ouviram. Uma frase que foi ouvida muito antes de ter sido pronunciada.

 

Mais do que assimilar essa lição, aprimorá-la tornou-se meta artística, e nesta continuidade não existe nada que o artista rebelde faça e jogue para a burguesia e que ela não absorva e colecione. A rebeldia que chocava os burgueses há algum tempo, hoje os encanta. A revolução parece ter acabado e os revolucionários ganharam. Os artistas e os comerciantes acreditaram no distúrbio e na revolução constante apregoada pelo anarquista Herbert Read: “Arte é eterno distúrbio, revolução permanente”.

 

O pensamento revolucionário suporta qualquer coisa, menos o próprio sucesso. Se a história, de fato, se formalizasse por narrativas, já estaríamos, tal como Alexandre, o Grande, chorando por não haver mais nada para ser conquistado, ou melhor, no caso da arte, subvertido. Os componentes da obscenidade de Olympia, de Manet, não são mais visíveis hoje, e a arte pode avançar além das barreiras impostas no final do século XIX. Ou ainda são visíveis? Se assim for, Mario Equicola pode ser ouvido, e junto a isso da Vinci renasce. Uma triunfal renascença pode acontecer, e mais do novo pode voltar a aparecer.

 

Nietsche afirmou que “as vantagens de ter péssima memória é divertir-se muitas vezes com a mesmas coisas boas como se fosse a primeira vez”. Desmemoriado ou partidário, o fato é: ser ignorante garante duplo prazer. Isso é algo bastante real. O que nos resta é nos satisfazermos com o passado, seja seu sabor indigesto, ou com a pura satisfação em nos deliciarmos com o nosso episódio passado favorito no presente.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

Marlon Anjos
Mestre em artes visuais. Neoísta.

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