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Imagem: Jean-Michel Basquiat – Sem título (1980)
[/vc_column_text][vc_column_text]Marlon Anjos faz considerações acerca da intitulação de obras de arte e obras literárias, de como isso foi visto durante a história e de como tal ato pode influenciar na leitura de uma obra. Por fim, faz uma breve exortação a você, caro artista contemporâneo.
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“Você que produz obras atualmente, por favor, se não for produzir sentido ou relação com o seu discurso, não demonstre a sua falta de imaginação e repertório deixando a obra com o seguinte apontamento na legenda: S/ Título.”
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Ut pictura poesis
Horácio
Constitui uma prática recente encontrar ao lado da obra uma legenda que informe o título e oriente a interpretação para compreendermos o conteúdo da mesma. Encontrar palavras que nomeiam obras não foi algo comum, nem para pinturas, nem para poesias, como Anne Ferry apontou em seu estudo sobre títulos poéticos na literatura inglesa. Mesmo que o texto pareça inseparável do título, nomear obras, durante séculos, não fazia parte da fisicalidade de sua construção. No entanto, pensar que o poema ocupa o mesmo espaço que o título fortalece uma conexão que busca auxiliar a interpretação. Deste modo, poetas, grosso modo, ofereceram menor resistência em titular as suas obras. Pintores, por outro lado, confrontaram as nominações afirmando que eram intrusivas à obra, e delimitaram as áreas de influência da palavra e da imagem.[/vc_column_text][vc_row_inner][vc_column_inner][vc_column_text]Mesmo no século XX, houve resistência em titular obras. “Uma pintura, para mim, fala por si só… Um pintor tem apenas uma língua”, declarou Picasso, enquanto George Moore reclamou em 1893 que “os pintores parecem ter vivido em bibliotecas em vez de estúdios”. Exemplos como esses apenas demonstram o que, por vezes, pode ser entendido como uma guerra que se travou entre a caneta e pincel.
As obras literárias nem sempre tiveram títulos, e nem sempre os títulos foram atribuídos pelos autores. Antes do século XVIII, era comum que a obra fosse intitulada por quem a apresentasse ao leitor. Assim sendo, o ato de titulação foi reservado a intermediários; tradutores, editoras, gravadores, entre outros.
[/vc_column_text][/vc_column_inner][/vc_row_inner][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Da mesma forma, como apresentado por Ruth Bernard Yazell em seus estudos em como e por que as pinturas ocidentais receberam títulos, a prática de titular pinturas encontra eco apenas a partir do século XVIII. Mesmo quando os artistas pintavam palavras nas telas, as frases não possuíam a função de nomear as obras, mas sim orientar o observador em relação ao tema. Em sua grande maioria, anteriormente ao século XVIII, as pinturas não eram nominadas por ser entendido que o tema que ela representaria seria de conhecimento de todos na região onde a obra fosse exibida – por isso, era recomendado que os artistas apenas representassem temas populares. Assim sendo, podemos observar que cada região trabalhou com alguns temas específicos.
Para corporificar o exposto, pensemos nas temáticas que eram representadas em duas regiões distintas da Itália, em Florença no século XVII e em Nápoles na mesma época. Ao analisarmos os temas representados, bíblicos ou mitológicos, perceberemos que cada região depositou a sua atenção a histórias particulares, de modo que podemos concluir que estas histórias estavam na boca do povo. Neste sentido, se todos reconheciam a história representada, não haveria necessidade de títulos. Tal que, podemos aludir que pinturas figurativas, quando tituladas, expõe redundância em relação à nominação e aquilo que é representado, pois as palavras apenas reafirmam o que as imagens já informam.
No entanto, a necessidade de títulos fez-se presente quando as pinturas começaram a circular para fora do país de origem. A titulação, como observou Ernst Gombrich, “é um subproduto da mobilidade das imagens”. Antes do surgimento do mercado de arte, a mobilidade de pinturas foi limitada. Pinturas de pequeno porte atravessaram regiões, representações de temas regionalmente particulares precisaram ser reconhecidas fora de seu “habitat natural” de proveniência. Assim sendo, foi necessário rotular as obras. Podemos perceber que a compreensão das imagens depende da cultura verbal. O conhecimento regional, por certo, era heterogêneo. Para o público, o título revela o primeiro idioma que a obra seria interpretada. Elemento didático que possibilitaria que pessoas de diferentes culturas compreendessem. Talvez por esse motivo, Norman Brysson afirme que a história dos títulos é também a história da democratização da arte.
Cumpre informar que as pinturas que admiramos em museus receberam seus títulos na era moderna. Intitular obras, anteriormente ao século XVIII, como já exposto, foi algo raro. As mudanças nas condições de exibições de obras de arte obrigaram que as obras possuíssem títulos. Cita-se ainda que, no caso de pinturas, os primeiros títulos partiram de listas de inventários de leilões, que identificavam publicamente as obras. Neste sentido, devemos ter em mente que o batismo das imagens, possivelmente, decorre de mais de uma mente, mas dificilmente da mente de quem produziu a obra – exceto com Pieter Bruegel. Assim sendo, percebemos que, na maioria das vezes, a escolha dos títulos não corresponde ao desejo do artista criador. Por esse motivo, deve ser levado em consideração o fato de que imagens, escritas ou pintadas, mudam de contexto por gerações no decorrer dos séculos. Por mais precisas que sejam as motivações e ou as teorias de títulos, sempre estará emaranhada pela história da recepção de obras. Isso autoriza a revogação ou a atualização da titulação.
Contudo, atualmente o artista tem o poder de escolher se quer titular a sua obra. Sabemos que essa liberdade da prática em titular obras de arte, em grande medida, é devida aos expressionistas. Os movimentos modernos agiram de maneira diferente em relação a essa prática. Informo que não iremos nos ater a essas peculiaridades neste texto. No entanto, penso que seja necessário fazer apontamento no que toca o assunto de titular obras de arte na contemporaneidade.
O pintor se torna, por menor que seja ou com relutância, também um autor ao poder titular a obra. O divórcio entre a imagem e a palavra tornou-se algo quase obsoleto na atualidade. Os esforços durante séculos de pensadores em traçar similitudes e convergências entre a palavra e a imagem não pode ser negligenciado. Não pensamos, atualmente, em um texto sem título – isso pode até incomodar o leitor -, porém, por que a pintura não titulada e pensada como “natural”, sendo que a ausência de título compromete a interpretação? Grosso modo, uma pintura sem título nos obriga a pensar que o assunto da obra é referente a sua materialidade. Vale lembrar que essa foi uma prática comum entre os pintores modernistas, que viram nesse ato uma forma de apontar que o sentido da pintura estava na ausência do título, numa tentativa em focar a atenção do observador apenas na materialidade da obra. Em muitas pinturas contemporâneas não tituladas, não é possível ver esse apontamento ou a sintonia do discurso referente à materialidade da obra. De tal modo que a falta de título parece apontar para a preguiça criativa do artista, e não para a materialidade da obra.
Cita-se ainda que em um mundo globalizado, o grande trânsito de obras exige que as mesmas sejam nomeadas pare serem identificadas. É uma questão de organização, além de ser uma questão semântica. A rivalidade entre a caneta e a pena não deve ser resgatada em prol da legibilidade, ou a comunicação pode ficar comprometida.
Por fim, sinto-me na liberdade de fazer um apelo aos artistas contemporâneos:
Você que produz obras atualmente, por favor, se não for produzir sentido ou relação com o seu discurso, não demonstre a sua falta de imaginação e repertório deixando a obra com o seguinte apontamento na legenda: S/ Título – nada mais detestável do que uma obra que foi batizada dessa forma por pura preguiça-, pois titular auxilia o observador a compreender e se relacionar com a produção da obra e do artista. É o modo pelo qual as pessoas iniciam a leitura, textual ou imagética. Não se pode reclamar e titubear pelas pessoas que não compreendem o seu trabalho quando se produz uma comunicação ilegível, ou ambígua. Neste sentido, a obra não compreendida é culpa do artista, e não da falta de conhecimento específico do público.
Por fim, a palavra e a imagem são dois lados de uma mesma moeda, e o que uma pode dizer à outra são potencialidades profundas.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]
e eu que sempre apreciei pinturas, gravuras e desenhos sem títulos achando que este detalhe me dava maior liberdade de apreciação… assim sabe??? Como um texto sem grifos que me permite escolher livremente quais passagens vão chamar mais ou menos minha atenção nos diferentes momentos de leitura.
Precioso o seu pesamento. De fato, acredito que a falta de títulos possibilita uma leitura mais livre da obra, indiferente do suporte que foi produzida.