Imagem: Cena de Life Lessons, de Martin Scorsese (1989)
Como pode um tema te marcar emocionalmente através de anos, ou te transportar, tal como uma máquina do tempo, para um contexto completamente separado do teu agora? Coluna por Vinicius Ferreira Barth, Procol Harum e Martin Scorsese.
“Não tenho um deck como o dele, uma fita cassete manchada de tinta para tocar, apertando aquele play que com um clique treme as paredes do universo.”
Nick Nolte me ensinou na cena acima como ser um artista solitário, um romântico ouvinte de Procol Harum. Desde essa cena a solidão e a música nunca mais foram as mesmas; desde essa cena a música nunca mais foi a mesma. Como pode um impulso sonoro, um conjunto de acordes numa gravação de décadas, te imergir em ansiedade, em fumo e bebida, e as várias camadas da espessa cortina de fumaça te trazerem a matéria desejada para uma produção artística impulsionada pelos rancores e sentimentos mais violentos de ciúmes. Como pode uma música despertar tais coisas?
Como pode uma música te isolar de quaisquer companhias que estejam ao seu redor, te incubando num tipo de esfera de fascínio metafísico que te ausenta de tua materialidade física, que se torna tão mesquinha e descartável?
Eis a magia do cinema. Queremos todos ser como nossos heróis dos filmes. Fizesse o que eu fizesse, eu seria o Nick Nolte dos meus dias e essa trilha seria a minha trilha, e ela estaria apenas aguardando o momento de surgir com glórias por detrás de um drama corrente, instintivamente amoroso, trágico, doente.
E eis que me ponho, posiciono-me tal como ele na sala em meia luz, no silêncio, junto com as toneladas da birosca da bebida que tenho e das fumaças de concreto que sopro incessantemente enquanto a inspiração não chega decentemente. Apenas a expiração. Observo a minha obra.
She said, ‘There is no reason
And the truth is plain to see.’
E aos poucos começo a discernir problemas como sombras em meio à escuridão que me fascina artificialmente. Essas pequenas percepções e conclusões me afastam da criatividade irracional que me atingia ainda há pouco. Não tenho um deck como o dele, uma fita cassete manchada de tinta para tocar, apertando aquele play que com um clique treme as paredes do universo. Aquelas caixas acústicas armadas com a madeira transcendental da gradiente, a vibração. Mas não me deixo abater. Serei um artista como ele. Procol Harum está na minha playlist do spotify, meu smartphone está equipado com o dolby atmos sound enhancement. Clico no play e ergo o volume no máximo – não naquele botão languidamente giratório, mas no clique, que em outros apps serve pra tirar fotos. Minha tela, a maior da linha, full hd e o escambau, exibe a capa do disco em 400×300 pixels. Com a minha trilha sonora emocional prontamente ativa e acontecendo, sento-me com meu mac no colo, em frente ao meu programa de edição, que já estava preparado anteriormente, e dou o zoom exatamente no ponto que decidi desenvolver e trabalhar nessa noite. Abro meu preset de brushes recém-compradas legalmente com meu cartão de crédito. Sim, agora o estrago começa. Tudo o que ela me causou estará aqui, cuspido nesses pixels de amargura.
Espera. Ctrl+z, ctrl+z.
Mas não há ela, nunca houve. Há apenas a janela oculta do google chrome aberta no redtube, posta ali para os intervalos no trabalho, para os momentos de dúvida, de hesitação perante as ondas e os sentimentos criativos que teimam em ocultar-se atrás da real galeria de medos feitos de carne que brotam pelos olhos de um artista que falha. Não, não sou como Nick Nolte, meu sentimento não é tão grande como a sua tela. Meu full hd não é tão perfeito como a sua tinta. Eu não tenho tinta, não tenho em quem bater com as espátulas nem um rosto real para agredir com meus pinceis sujos de vida. Um brush do photoshop não mata. No primeiro refrão da música, o som é estuprado pela pausa seguida de um ring de notificação no smartphone. Não, não há cartas, não há envelopes, não há nada. A música volta a galope, com um soco, o refrão já passou, a notificação é apenas um aviso mandado pelo facebook a respeito de aniversários de pessoas que não conheço e para quem nunca mandarei cartões pelo correio. Pois nem essa notificação vem de uma pessoal real. O som desse meu aparelho perderia até para os radinhos de pilha que o Nick Nolte certamente tem dentro daquele estúdio maravilhoso e trágico. Minha sala não é o seu estúdio, passei um pano na mesa, que brilha, e me dei conta que nem para a maldita sujeira do romantismo eu estou pronto. Estou longe de ser como Nick Nolte. Ele sabe bem o que significa essa música, porque ela é dele, não minha.
Afundado no desprezo pela minha obra interrompida, fecho o mac. E como num flash, percebo que não se trata mais de Nick Nolte, talvez nem mais de Lionel Dobie. O maior apreciador de Procol Harum é Martin Scorsese, e vejo sob a pouca luz do recinto a minha admiração tornar-se inveja e angústia. Nick Nolte parecia um ideal tangível – por mais idiota que possa parecer essa conclusão – mas tornar-se Scorsese estaria além das possibilidades de qualquer garoto que fuma L.A.’s no escuro da sala dos pais.
É incrível como uma música pode tornar-te quem não és.