[vc_row][vc_column][vc_column_text]
“Foi aí que veio o estalo de como as epígrafes se integram aos contos, não só como pista para o que vem, mas principalmente para interpretação mais reveladora. Um Recife enriquecido por um jogo intersemiótico. Vibrei.”
[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]No conto ‘As Loucuras do Minotauro’, Dalton Trevisan dá um tom todo seu à Curitiba: “Sabe que toda família curitibana tem um louquinho fechado no porão?”, essa premissa, aterradora, mas reveladora, poderia ser transportada para uma interpretação do Recife dos contos do livro Os mortos não comem açúcar, de Alexandre Furtado: Sabe que toda família recifense empareda o passado? Com a sutileza de um arquiteto desenhando um projeto e a exatidão de um engenheiro calculista, Alexandre Furtado instalou cobogós nas tradicionais casas do Recife.[/vc_column_text][vc_column_text]O livro Os mortos não comem açúcar foi meu primeiro contato com o ficcionista Alexandre Furtado, só conhecia o professor e o poeta do Ruas e Itinerários. O livro inicia despretensiosamente com o conto Tão logo a noite acabe que apresenta uma epígrafe retirada de uma música de Paulinho da Viola (trecho de Para um amor no Recife). Meus olhos, já cansados de tanto Recife na literatura contemporânea, leram preguiçosamente as pouco mais de dez páginas do conto que, como a música, falava de Recife. Fora aqui e ali uma passagem mais capciosa, nada de novo sob o sol, vamos ao próximo. O Assim, quando menos se espera, e mais uma epígrafe, dessa vez de Travessia, do Milton Nascimento. Foi aí que veio o estalo de como as epígrafes se integram aos contos, não só como pista para o que vem, mas principalmente para interpretação mais reveladora. Um Recife enriquecido por um jogo intersemiótico. Vibrei.[/vc_column_text][vc_row_inner][vc_column_inner width=”1/2″][vc_single_image image=”3286″ img_size=”full”][/vc_column_inner][vc_column_inner width=”1/2″][vc_column_text]É esse jogo que será uma das grades marcas do texto de Alexandre Furtado. Por meio da pegada musical de seus contos somos quase que transportados para um cenário com linguagens múltiplas. Por exemplo, no conto Uma história assim é outra, que além de contar com um monólogo quase rosiano, com seu interlocutor oculto, mas fundamental, traz como epígrafe “Não guardo mágoa, não blasfemo, não pondero/ não tolero lero-lero, devo nada a ninguém” e conta a história de Inácia que, divagando sobre seu passado, de gozo e sofrimento, mostra a centelha que cada um é, mais ou menos apagadas mas centelha única, quando conclui: “Olha, vou contar uma, aqui, no pé de ouvido, uma história é a do povo, sabia? Desse povo merda que não tem o que fazer. Outra história é a da gente….” E aí a permanência das mesmas personagens ao longo do livro ganham um novo sentido. Entendemos a relação com a epígrafe porque entendemos Inácia ao longo de contos anteriores sobre a família que gravita em torno dela. É a realização de toda ‘vizinha’ bisbilhoteira. Somos chamados para conhecer o Recife de dentro de casa. E os que não são cavalgados são nivelados.[/vc_column_text][/vc_column_inner][/vc_row_inner][vc_column_text]Torna-se então, a ideia do Recife de dentro de casa, não mais uma história que fala do Recife, percebo Os mortos não comem açúcar como uma espécie de anti-ode recifense. Ora, comecei a ler Recife como todo mundo. Lendo Evocação do Recife, de Manuel Bandeira, o Recife velho que parecia que era muito bom (mas a gente sabe que não era). Aprendi a ler o Recife com João Cabral de Melo Neto, mais tarde com Everardo Norões, que, juntos, levam a gente a desconfiar da calma que emana das paisagens antigas e silenciosas ao largo do rio. Alexandre Furtado, que tem por hábito docente levar turmas inteiras de estudantes a passear pelo Recife, tem um sentimento de pertença a um Recife diferente dos livros. O dele é o Recife de quem frequentava as casas, as ruas, que sabia (ouvia?) (d)as conversas dos prostíbulos das zonas portuárias. A intimidade que nos é revelada nos contos faz parte de um Recife que talvez já tenha morrido, mas que ele resgata, e esse resgate nada têm da nostalgia piegas que rapidamente poderíamos associar. É um resgate revelador que, como as nossas histórias, é ‘outra’. Por meio desse resgate, Alexandre Furtado aplica um novo tipo de memória à cidade, uma memória produtiva. O passado torna-se ativo, em torvelinho.[/vc_column_text][vc_column_text]Personagens ambíguas misturam-se e essa anti-ode ganha ainda mais corpo com a amálgama inevitável das pessoas ‘de família’ com a prostituta, o pervertido, etc. É uma ambiguidade que ora é do corpo, ora é da alma. Num dos contos que mais gostei, o É jogo, foi há apresentação da família de Angela. Nele, num fingido jogo de baralhos – há o tom de sedução, de sexo – há o fingimento do jogo, o fingimento da mãe que finge não saber o que ocorre ao sair de casa. Interessante ponto é que as saídas de D. Sueli (a mãe) são sempre para comprar sutiãs para a filha Angela (para onde iam? Ninguém questionava, ou se importava). “A moçada não perdoava sua ausência”.[/vc_column_text][vc_column_text]As pessoas funcionam como uma metáfora do Recife. Pontos de encantamento, de horror, de tristeza. Parece-me que o Recife para Alexandre, e agora para nós, é como aquele Rio, que sabemos sujo e maltrapilho, quente, mas que quando captado por nossa retina brilha e nos transborda.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]
____
Frederico Machado é Doutor em Teoria da Literatura – UFPE, professor de Literatura, coordenador na Unidade Acadêmica de Letras da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (FACHO).
[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]