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“Fulano recorta ideias, convicções, muito do que julga ser o seu próprio pensamento, daqui e dali. Escreve num papel tudo aquilo que julga ser o seu EU.”
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Intérprete de ideias, criador; Fulano é uma promessa de escritor genial.
(Que ideia teríamos dele mesmo, que aparência ele assume sob essa breve descrição acima?)
Que ideias são, de onde vêm, que orgulho torna esse Fulano um paladino de um tal conhecimento a ser verificado, interpretado, trabalhado e moldado pela sua escrita? Ideia que, por essa esculpição do mármore-palavra torna-se, na melhor das hipóteses, a verdade de uma raça.
Quem está por trás desse Fulano que assume essa tarefa de dizer?
Pois bem, Fulano escreve a primeira frase, a primeira de umas cem ou duzentas ou milesetecentas páginas. Sua bagagem literária mnemônica se ativa, todo o seu arquivo cerebral se ativa (o cérebro, um HD – hoje as pessoas guardam muito dele em ‘nuvens’, esses locais de armazenamento distante, de acesso remoto).
Fulano recorta ideias, convicções, muito do que julga ser o seu próprio pensamento, daqui e dali. Escreve num papel tudo aquilo que julga ser o seu EU. Fulano escreve uma grande verdade, escreve aquilo que, lendo tantas vezes em outros autores, julga tão crente ser uma grande verdade. Pensa que é seu.
Liga o som, escolhe com grande critério aquilo que o inspira: Arctic Monkeys, Berlioz, Karol Conka?
Fervoroso:
Enquanto Etienne vivia, Michel dedicou-se aos divertimentos mundanos, gostando de enfeitar-se, beber bom vinho e deliciar-se com as mulheres, vendo-as apenas como objeto de prazer sensível e achando-as, além de possessivas, incapazes de elevação espiritual.
Etienne, por outro lado, tocava piano, aprendia e ensaiava Mahler, quarteto em lá menor, incessantemente. Em cima do piano, às vezes atrás, Michel carregava uma de suas prostitutas preferidas para futricar ao som de Mahler. Apreciava sexualmente o quarteto em lá menor; foi ele que forçou Etienne a estudá-lo, para que trepasse com as suas preferidas tendo a preferida trilha sonora vibrando no corpo do piano e nos seus. Acima do piano pendurava-se a pintura de Oskar Kokoschka: uma mulher cobrindo-se com o lençol, que Michel apelidara de Edwiges.
Thaís, uma das preferidas, leu uma vez um poema de Leminski para Etienne, que não o entendeu. Etienne era um homem tanto prático como prolixo. Pouco se fez de sentido daquele haikai em lá menor. Michel considerava-a possessiva, incapaz de elevação espiritual, mas Etienne pensava o contrário. Pensava sinceramente que ela era inteligente porque lia coisas que não entendia. Ela lia que o varredor, xlep, xlept, xlepft, ao que lhe retrotruncou nas barbas de serpilho o roscfosc: glub, plug, glut, isso é pilo aguazil! E lia também que lá no canto, bruxuleia o escrúpulo esdrúxulo (que queria dizer isso, pensava Etienne?): para extrair o sabor de dentro da mente, ai que algonizar tempos de muito dias! Empanzina, ermilitão; estafermo, bonifrate! (não sabia, ainda, que se apaixonara) Thaís: Abrem-se as cortinas de fumaça, trevas se fazem ver altaneiras, encimadas por uma embaixada.
Assim, efetivamente, é.
Enquanto Etienne vivia, Thaís era a sua preferida, vibrando entre o corpo de Michel e o piano que Etienne tocava.
Bêbado, quem me comprenderá?
Fulano termina a sessão com glórias e angústia. Passa a noite na companhia de Caroline, na padaria vintequatro horas e conta para ela um pouco do enredo que acabara de compor, de construir e perceber, e concretar no papel como uma das mais novas verdades. (não sabia, ainda, que se apaixonava). Ela atentava, concentrada, à prolixidade e um pouco à petulância. Gostava de Arctic Monkeys e era pouco sensual, embora ele não soubesse (ela é bem feia, portanto deliciosa). Fulano achava que ela não tinha grande acesso. Via-a apenas como objeto de prazer sensível, achando-a, além de possessiva, incapaz de elevação espiritual. Ela nunca ouviu Mahler.
O livro um dia termina-se, um capítulo da vida de fulano concretiza-se em páginas de papel pegável; ele contribuiu, enfim, para a sua raça. Não sabemos o que aconteceu com Caroline. Depois de um ano de vida em comum, ela confessou que jamais sentira prazer.
Ele revê seu material, ignora que seu cérebro era um amontoado de leituras anteriores. Julga que sua obra é uma contribuição de uma mente perspicaz e bastante sensata. As fronteiras entre os recortes estão nubladas, seu monstro recebe o raio da vida e é só seu. Olha com orgulho para dentro do cercadinho, do chiqueirinho onde juntou diversos recortes, citações inconscientes, e lá do alto do seu direito autoral exclama: “Isto é meu!”
Caroline um dia confessa:
“Fui tomada subitamente de uma incomensurável raiva contra aquele magnífico imbecil que me pareceu concentrar nele todo o espírito da França.”
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