Bernardo Brandão, o colunista convidado para a coluna Ruído desse mês, fala um pouco sobre as músicas que formam o nosso universo, que vêm nosso corpo, e que, assim como a filosofia, oferecem um caminho de sentido entre os mistérios da existência.
“Esse é o prazer do estranhamento: descobrir que o óbvio não é óbvio, que as coisas podem ser diferentes – e que, no passado, já foram diferentes.”
Um dos prazeres que tenho com a leitura de textos da Antiguidade é o estranhamento que eles me causam ao mostrar de maneira inusitada algo que, até então, me era familiar. Penso, por exemplo, em uma passagem do Contra os músicos de Sexto Empírico, um cético do século II d.C, que aproxima o músico do filósofo. Segundo conta-nos Sexto, em sua época, alguns acreditavam que tanto a filosofia quanto a música teriam o poder de regular a vida humana e refrear as paixões da alma, sendo que a música seria ainda mais eficaz por causa de sua persuasão encantatória.
Sabemos que a música é parte importante de nossa vida, mas como seria ela capaz de regulá-la? Temos a experiência de seu poder em evocar emoções, mas ela realmente poderia nos fazer mais calmos e moderados? E a filosofia? Ela nos leva a uma visão mais profunda do mundo. Mas, por causa disso, teria o poder de ordenar nossa alma? Esse é o prazer do estranhamento: descobrir que o óbvio não é óbvio, que as coisas podem ser diferentes – e que, no passado, já foram diferentes. De acordo com Boécio (De institutione musica), existiriam três tipos de música: a cósmica, a humana, a dos instrumentos. A música, tal como nós a entendemos, instrumental, “produzida por tensão, como nas cordas, ou pelo sopro, como no aulos, ou nos instrumentos que se ativam hidraulicamente ou pela percussão”, não seria mais que uma das manifestações da harmonia que também se encontrara no mundo e no homem.
A música cósmica se manifestaria na sucessão ordenada das estações do ano e no percurso regular das estrelas e planetas: “pois como é possível”, escreve ele, “que uma máquina tão veloz como a do céu se mova em uma trajetória muda e silenciosa?”[1] . E continua: “ainda que, por muitas razões, seu som não chegue aos nossos ouvidos, não é possível que um movimento tão rápido e volumoso não produza nenhum som, especialmente porque o curso das estrelas está ajustado em uma harmonia tão grande que nada tão perfeitamente unido, nada tão perfeitamente ajustado pode ser concebido”.
A música humana é aquela que existiria dentro de nós mesmos: “que é que mistura ao corpo essa vivacidade incorpórea da razão, senão a coerência e equilíbrio entre os sons graves e os agudos, que produzem como que uma única consonância? Que outra coisa poderá ser o que une entre si as partes da própria alma que, de acordo com Aristóteles, é constituída pelo irracional e o racional? Que outra coisa poderá ser o que combina os elementos do corpo ou mantém unidas suas partes com uma ligação firme?”
Sendo harmonia do corpo e da alma, essa manifestação da música não estaria tão distante da filosofia que, para os antigos gregos e romanos, não era feita apenas de argumentos e teorias, mas também de uma certa atitude perante a vida. Segundo Pierre Hadot, um dos grandes estudiosos do tema, a sabedoria buscada pela filosofia era uma vida marcada pela paz de espírito, liberdade interior e consciência cósmica. A filosofia era um modo de estar no mundo que devia ser praticado a cada instante e cujo objetivo era transformar a totalidade da existência. Era uma arte de viver que, como a música humana, buscava a ordem da alma.
Essa é uma perspectiva muito diferente da nossa: músicos e filósofos como companheiros de uma mesma jornada. A esse respeito, Plotino, um platônico do século III d.C., em mais um desses textos estranhos que a Antiguidade nos legou, dizia que três eram os tipos de homens capazes de seguir seu caminho de ascensão espiritual: o músico, o amante e o filósofo.
O filósofo estaria preparado para a jornada porque, sendo por natureza fascinado com a ordem invisível que fundamenta nosso mundo visível, estaria já disposto a se elevar até ela. O amante, desejando intensamente a beleza do corpo humano, poderia aprender a desejar também a beleza da alma e do conhecimento e, assim, alcançar o próprio Belo. Já o músico, ao se deleitar com a harmonia dos sons, estaria, no fundo, buscando a harmonia silenciosa que também preside o homem e o universo e que não é outra que a ordem procurada pelo filósofo. Por isso, poderia se transformar ele mesmo em filósofo e ascender.
Não nos causa hoje espanto que filósofos estudem a música, seu poder e sua natureza. Mas nos estranha que alguém nos diga que a música é também um caminho filosófico. A não ser que, como Plotino, acreditemos que músicos e filósofos são, no fundo, movidos por um mesmo desejo de harmonia, ou, ao menos, por uma mesma necessidade de encontrar sentido ante às dissonâncias com as quais nos deparamos em nosso caminho pelo mistério da existência. Se for esse o caso, Platão e Johann Sebastian Bach não estariam tão distantes assim.
por Bernardo Brandão[2]
[1] Faço aqui uma adaptação da tradução de Carolina Castanheira.
[2] Bernardo Brandão é professor da área de Letras Clássicas do curso de Letras da UFPR e coeditor do blog de poesia Escamandro.
[…] (Publicado em: R Nott Magazine, agosto de 2014) […]