imagem: Vincent van Gogh – Três pares de sapatos (1886)
O mistério do sumiço do Sapateiro Silva das antologias de poesia brasileira é debatido por Guilherme Gontijo Flores, que também traz alguns poemas do autor. Entre e conheça esse trabalho.
“Silva tinha do povo somente o lado da farsa, do burlesco; alguma cousa do que se pode chamar o canalhismo em poesia.”
É já um costume gagá de velho esse de criticar qualquer antologia pelos critérios de “esse não entrou”, “aquele não entrou”, “aqueloutro devia ter entrado”, “meu amigo não entrou”, “eu não entrei”, etc. É pouco produtivo, por dois motivos bastante simples: em primeiro lugar, esse tipo de comentário/crítica costuma não prestar atenção nos critérios organizacionais de uma antologia e, por isso mesmo, esquece que toda antologia é limitada pelo simples fato de que ela delimita, uma antologia é uma ferramenta crítica, no sentido antigo de krísis em grego, “separação”, “seleção”: antologias separam (ou deveriam separar) o joio do trigo e, com isso, formam cânone(s), para o bem e para o mal.
Feita a ressalva, revelo meu espanto: em menos de uma década, tivemos um longo estudo de fôlego sobre a poesia brasileira (Uma história da poesia brasileira, escrita por Alexei Bueno, em 2007) e duas antologias, ambas saídas em 2012 (Poesia.br, organizada por Sergio Cohn, e La poésie du Brésil, organizada por Max de Carvalho, publicada na França numa edição bilíngue); mas em nenhuma dessas três obras aparece o nome do Sapateiro Silva. Não é que ele esteja à margem dessas obras, ele não está lá, como de fato não está na cabeça da imensa maioria dos brasileiros.
Sobre Joaquim José da Silva, conhecido sob a alcunha do poeta satírico Sapateiro Silva, não sabemos quase nada: teria nascido em 1775, no Rio de Janeiro, onde viveu e morreu em algum dia dos meados do séc. XIX. A obra que nos restou é parquíssima: temos poemas seus que saíram no Parnaso brasileiro, organizado em 1830 por Januário da Cunha Barbosa, e no Florilégio da poesia brasileira, de 1845, de Francisco Adolfo Varnhagen, que se resumem a 8 sonetos e 7 glosas, meros 15 poemas. Sacramento Blake, no seu Dicionário bibliográfico brasileiro, o descreveu como alguém que “teve comércio com as musas e foi poeta célebre no seu tempo”, um dos poucos comentários sobre o poeta. Mas, apesar do julgamento positivo de Sacramento Blake, creio que foi a visão severa de Sílvio Romero que se espalhou pela crítica brasileira do séc. XX. Na sua História da literatura brasileira, ele afirma categoricamente que o Sapateiro Silva
não é um poeta satírico, também não é um poeta cômico, ou o que hoje chamamos um humorista. Era um improvisador em estilo agreste, mas não possuindo a profunda vivacidade, nem a doce melancolia do povo.
Silva tinha do povo somente o lado da farsa, do burlesco; alguma cousa do que se pode chamar o canalhismo em poesia.
Enfim, sua avaliação pesou, sua obra passou quase despercebida pela História da literatura brasileira de José Veríssimo e pela monumental Formação da literatura brasileira, mas em 1983 Flora Süssekind & Rachel Teixeira Valença organizaram aquele volume fundamental, O Sapateiro Silva, onde propunham uma revisão da sua obra e re-apresentavam seus poemas ao público. Esse trabalho lembrava o processo dos irmãos Campos na Revisão de Sousândrade e de Kilkerry: comentário crítico de um poeta esquecido acrescido de antologia do poeta, ou seja, revitalizá-lo pela crítica na reedição. Essa proposta de Süssekind & Valença foi, em parte, bem sucedida: o Sapateiro Silva passou a aparecer, ainda que discretamente, nos estudos e nas leituras de poesia brasileira. Figura na História concisa da literatura brasileira, de Alfredo Bosi, por exemplo.
Porém, como eu já disse, de 2007 pra cá três obras fundamentais, formadoras de cânone, deixaram esses poemas de lado e com isso deram sequência ao prolongado sequestro do Sapateiro Silva. Não quero aqui desmerecer o trabalho de Sergio Cohn, que, por exemplo, reservou um volume inteiro da sua antologia para a poesia ameríndia (fato, que eu saiba, inédito no Brasil) e mais 5 volumes para a poesia dos últimos 50 anos (uma clara demonstração de que o contemporâneo interessava mais como critério de edição/seleção). Nem diminuir um trabalho com o vigor do de Max de Carvalho: afinal, ele traduziu cerca de 700 páginas de poesia brasileira — e isso, meus amigos, não é pra qualquer um. No caso de Alexei Bueno, embora eu discorde de muitas das suas argumentações e avaliações, também só posso (me) cutucar, já que ninguém mais teve o ímpeto de sequer tentar essa empreitada: nossas narrativas longas, até da poesia, estão quase paradas.
Mas o fato é que o Sapateiro Silva apresenta um problema diferente dos de Sousândrade de Kilkerry, na verdade, dois problemas: o primeiro é que estes dois poetas foram revistos pelos concretistas, poetas centrais da poesia brasileira da segunda metade do séc. XX; enquanto o Sapateiro ressurgiu no meio acadêmico (apesar de apresentar uma poesia nada acadêmica) por um livro da editora da Fundação da Casa de Rui Barbosa. Como no caso das revisões canônicas propostas por Ezra Pound e T.S. Eliot (dois exemplos: ressurreição dos metafísicos ingleses e o enterro de John Milton) tiveram — e ainda têm — mais impacto do que a revisão mais recente dos românticos ingleses por Haroldo Bloom. Tudo indica que a revisão do cânone feita pelos poetas é mais rápida do que aquela que vem da academia, mesmo que a importância seja igual.
Em segundo lugar, a meu ver o mais importante: Sapateiro Silva não se enquadra nas narrativas sobre a literatura brasileira. Contemporânea do nosso arcadismo, sua poesia não apresenta nada daquele gosto maneirado (leia-se temperado) que tomou Minas Gerais no século XVIII. Sua verve satírica, citadina e coloquial aponta mais para o que viria a produzir Bernardo Guimarães cerca de 50 anos depois. Assim, se voltarmos aos livros que venho comentando, veremos que Bueno ainda divide seu livro nas categorias das “escolas” (cito o título de três capítulos: “Barroco nos trópicos”, “O teatro arcádico”, “A explosão romântica”); do mesmo modo, Max de Carvalho organiza seu livro em “Origens”, “Arcadismo”, “Pré-Românticos”, “Românticos”, etc.: nos dois casos, o Sapateiro Silva não tem como entrar, a não ser como marginal, se chegasse a obter esse espaço. Já na antologia de Cohn, a divisão é um pouco mais sutil, já que parte de “cantos ameríndios”, para “colonial”, depois “romantismo/pós-romantismo”, “modernismo”, etc.: daí podemos ver que, em apenas 2 volumes (cerca de 300 pp.), está contido o resumo da poesia brasileira, de Anchieta [1534-1597] a Gilka Machado [1893-1980], ao longo de quatro séculos! Como eu disse, Cohn prezou pelo contemporâneo, o que explica a ausência de um poeta novo no cânone para um seleção concisa. Sousândrade e Kilkerry entraram, o Sapateiro ainda não conseguiu.
O único caso de publicação antológica recente que deu espaço ao Sapateiro foi a Poesia (im)popular brasileira, organizada por Julio Mendonca, também em 2012 (no fim das contas, que ano fértil!). Neste trabalho realizado por vários colaboradores (e da qual felizmente pude participar com Sousândrade), o próprio título indica a busca pelos marginalizados da história literária, então junto com o Sapateiro ainda encontramos Stela do Patrocínio, Qorpo-Santo, Pagu, etc. Nesse caso, a presença do Sapateiro é o indício da sua ausência: estar nessa antologia crítica proposta por Mendonça é sinal de uma marginalização constante e, muitas vezes, prolongada. No livro, o texto sobre o Sapateiro ficou a cargo de Júlia Studart, por isso fecho esta nota breve com um citação dela:
De fato, as sugestões de leitura que encontramos nos poemas do Sapateiro são muito mais uma impossibilidade de classificação aos padrões do período por causa da constituição de uma desordem da linguagem, que tem a ver, claro, com os seus usos de pulverização da língua contra a sintaxe clássica e tradicional. Tanto tempo jogado na lata de lixo da história de nossa literatura exatamente por causa de sua inadequação, anotado aqui e ali nos rodapés e nas margens de nossos manuais mais complexos […], o que sobra do Sapateiro é precisamente a desordem da sua produção. Ou seja, o precário de sua sapataria poética é que nos faz retomar o corpo da história e reposicioná-la em relação à dimensão de seu próprio extravio (p. 164).
A isso eu acrescentaria: e talvez lutarmos pra que esse extravio não persista.
* * *
3 poemas
Eu queria, mas eu tenho vergonha
De dar e conhecer a minha tolice;
Deixamos de fazer a parvoíce,
Que havia de feder mais do que a peçonha.
Mas que importa que outro se me oponha
Por querer ser pateta, ou ser felice,
Se comigo assentei por fontorrice
Ser hoje o grande Duque de Borgonha?
Já contente no meu gaudério estado
Tenho fardas, palácios, e dinheiro:
Já não peço a ninguém nada emprestado.
Porém leve o diabo o meu roteiro,
Que apesar das farófias do Ducado,
Todos me leem nas costas – sapateiro.
* * *
Um batuque se fez em São Gonçalo
Das moçoilas do Rio de Janeiro,
Onde foi Frei Tobias pasteleiro,
E escamador, Pai Paulo, de um robalo.
Eis o grande Camões em seu cavalo,
Todo torto, mui feio, e mui feceiro,
Conduzia a função de um candeeiro,
Três tainhas, seis pargos, e um galo.
Por não perder da Festa a grande manja
Também se achou um certo salafrário,
Com cara mais inchada que turanja
Porém com não era batucário,
Apenas o bridaram com laranja
Serenada no ilhós do seu Vigário
* * *
MOTE
Amei a ingrata mais bela,
Que o mundo todo em si tem;
Eu morri sempre por ela,
Ela nunca me quis bem.
GLOSA
I
Quando eu era mais rapaz,
Que jogava o meu pião,
Andava o Centurião
Dando a todos sotas e ás.
Nesse tempo aos Sabiás
Armava a minha esparrela;
Comia caldo em panela
Por ter os pratos quebrados;
E até por mal de pecados,
Amei a ingrata mais bela.
II
Depois de mais alguns meses
Já por baixo da sobcapa,
Pelas calçadas da Lapa
Pernoitava muitas vezes.
Não bastaram os arneses,
Que herdei de Matusalém;
Só sei que querendo bem
Me achei como Antão no ermo,
E o mais galante estafermo,
Que o mundo todo em si tem.
III
Com os anos, com a idade,
Na festa e seu oitavário,
Só em passo imaginário,
Andava pela Cidade.
Se é mentira, ou se é verdade,
Diga-o a minha mazela,
Que não sendo bagatela
Bem mostra de cabo a rabo,
Que por artes do diabo
Eu morri sempre por ela.
IV
Depois de velho caduco,
Já cheio de barbas brancas,
Eu bispei-a dando às trancas
Nos sertões de Pernambuco.
Ali trabalho e trabuco
Por lhe abrandar o desdém;
Mas o mau modo, que tem,
Procedido da vil prole,
Faz crer que nem a pão mole
Ela nunca me quis bem.
* * *
Referências
Bueno, Alexei. Uma história da poesia brasileira. Rio de Janeiro: G. Ermakoff, 2007.
Carvalho, Max de. La poésie du Brésil du XVIe au XXe siècle. Anthologie traduite par Max de Carvalho en collaboration avec Magali de Carvalho & Françoise Beaucamp. Paris: Chandeigne, 2012.
Cohn, Sergio (org.) Poesia.br. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2012 (10 vols.)
Mendonça, Julio. Poesia (im)popular brasileira. São Bernardo do Campo: Lamparina Luminosa, 2012.
Studart, Júlia. “Joaquim José da Silva: a desordem da sapataria.” In: Mendonça, Julio. Poesia (im)popular brasileira. São Bernardo do Campo: Lamparina Luminosa, 2012.
SÜSSEKIND, Flora & VALENÇA, Rachel Teixeira. O Sapateiro Silva. Rio de Janeiro: Fundação da Casa de Rui Barbosa, 1983.
Site com a obra do Sapateiro Silva, acompanhada de um viés crítico.
http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/Sapateiro/index.htm