Sangue, suor e lágrimas. Juliano Samways pensa sobre a organicidade da performance musical, a gota de suor do artista que reflete o trabalho de anos, o vulto que se faz carne através do som. Confira!
“A música é esse vulto que se faz carne através do som, a arte é um panteísmo adoidado de pessoas que se tornam multidões.”
É na gota de suor do artista que se vislumbra o universo orgânico da arte. É na babinha, no canto da boca do poeta, que se visualiza o esforço de se manter a voz, o som das palavras em sua mais formosa métrica ao ar. É na camisa suja de pinceladas, tintas sangrando na pele do pintor, que julgamos a sua dignidade. É no front com o público e sua sujeira que a arte deve perseverar. Coitado e afortunado é aquele fotógrafo que em tudo vê arte, torna um iceberg de imobilidade qualquer fração de segundo, incomoda as velhinhas na feira em prol da afirmação da sua arte. A arte possui uma sobrevida além e aquém do solitário mundo virtual, e sobrevive no fanzine de poesias e mandamentos do punk poeta. A arte circula pela rua, transpira, caga, vomita, e muitas vezes perfuma o ambiente.
Na música esta proposição também é válida, é real. No final de maio de 2013, há quase um ano, no Luna Park em Buenos Aires, presenciei algo que para meu ser-espectador foi épico: ver bem de perto o suor dos artistas da banda Yes. Não por ser o suor dos quase septuagenários integrantes desta banda, mas por perceber que existe uma constante de esforço físico na música do século XXI, que estava ali, presente na apresentação deste cânone da música rock progressiva que transita na história de já dois séculos. O esforço pela última turnê, pelo novo trabalho, por se manter na estrada, esforço por manter viva, manter a música como uma potência afirmativa.
Esse suor, essa gota de esforço físico pela música, transforma-se em um ingrediente catalisador na multidão que está ali pelo show, pela figura do artista. Nesse momento a multidão completa-se em um todo, um todo arte que potencializa essa relação de espetáculo e espectadores. Talvez daí a grande alegria e euforia de fazer parte de um todo, em um cotidiano individualizante-zado, esse todo é um todo orgânico e fisiológico.
O filósofo luso-judaico-holandês Baruch de Espinosa revelava na profundeza visceral do seu pensamento a singularidade do conceito de conatus. Exatamente esse sentimento que gostaria de passar aos leitores. Dizia Espinosa que a conatus é uma força, um esforço de preservação da mente e do corpo, uma energia vital de afirmação e conservação. É uma espécie de força que independe do orgânico e do espiritual, pois ambos são o mesmo nesta conatus. Um dualismo que se torna monismo para preservar a vida, defender uma existência. Cada suor que corre no punho de um grande guitarrista, os já conhecidos dedos ensanguentados de Hendrix, as três horas e meia de um concerto de rock conduzido por anciões, vários exemplos de como a conatus, além da vida e da morte, afirma sua presença. A conatus aplicada à música seria uma potência afirmativa de vitalidade, que ainda segundo o Bendito (tradução de Baruch) Espinosa, nos conectaria a Deus, pois nós somos atualizações dos predicados divinos. Neste retrato do mundo e dos desejos, retrato da realidade captada por Espinosa, o divino, que ele também chama de natureza, estaria nessa dinâmica de desejos, nessa relação de atributos que integram o artista e seu fã. O fã, o espectador, dá vida à conatus do músico, e o músico dá sua conatus, sua garganta sem voz, dedos sujos de tinta, milhares de cliques ganhos ou perdidos em um dia.
Esse assunto da organicidade e escatologia da música muito me interessa, pois é como observar a arte do mainstream e do underground sem as lentes da fama, do dinheiro, excentricidades que sempre poluíram o mundo da arte musicada. É aquilo que faz a arte humana, desse animal quase que primitivo, que possui a essência de musicar nas suas mais variadas formas, e quando cria música, cria também todas essas possibilidades sócio-orgânicas contempladas pelo dom da arte.
Esse fenômeno do artista orgânico, pessoal, que existe na sua frente, que padece ao vivo as agruras do corpo, é o que talvez esteja fascinando todo um novo público. Talvez todos os artistas sejam orgânicos, um bom observador possa dizer. Mas talvez nem todos os artistas vivam para essa maratona, ou talvez até triátlon de show, estrada e produção. Assistindo ao documentário sobre a história do eternamente orgânico, pancreático, Raul Seixas, intitulado “O início, o fim, e o meio” (2012), pude constatar como sua última turnê, junto ao músico e compositor Marcelo Nova, imortalizou seus últimos instantes no grito de guerra universal “toca Raul”. Pois a cada vez, a cada lugar que este mandamento, esta palavra de ordem é gritada, o vulto se faz carne, e o grande artista resplandece.
Se a máxima de Espinosa era “Deus sive natura” (Deus é natureza), a máxima da música deveria ser: música é organicidade. A arte é essa coisa que te escapa pelos dedos, esse fluído que escorre e te conecta com o outro, uma relação intensa de vasos comunicantes. A música é esse vulto que se faz carne através do som, a arte é um panteísmo adoidado de pessoas que se tornam multidões. O mundo da música acaba sendo o mundo do suor, o trabalho e os dias colocados em prol deste super caldo orgânico, esse sopão que é a vida.