capa: Dora Maar, Manequin-étoile, 1936
“‘Era uma vez’, disseram”.
“‘Era uma vez’, disseram”.
Acordei com este ruído, com uma voz que sussurrava em meus ouvidos psíquicos “‘Era uma vez’, disseram”.
Pensei, ao abrir os olhos, quem disse e por que o disseram?
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Segui o dia com esta sensação de insegurança, com a cabeça dolorida, pois não sabia quem poderia ou quem gostaria de estabelecer uma comunicação deste tipo comigo: uma comunicação que comunica o incomunicável.
Seria eu? O meu próprio eu que tenta estabelecer uma comunicação comigo?
Essa história do “‘Era uma vez’, disseram” é minha própria história?
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Os dias se passaram e a sensação de insegurança perdurou, perdurou porque, de fato, não tenho grandes perspectivas de futuro.
Minha mãe sempre me dizia que nasci para brilhar, que eu brilharia como uma estrela, que eu teria sucesso, que eu poderia ser e fazer o que quisesse, pois teria sucesso.
Quando ela me dizia esse tipo de coisa – confesso – eu não me sentia nada confortável. Acontece que herdei o fracasso de minha mãe: não nasci estrela cadente, nasci (como ela) decadente; e mesmo que a decadência seja minha realidade, este estado de alma ou esta condição de vida continua a me assustar em potência. Tenho medo de ser mais decadente do que todas as estrelas (de)cadentes.
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Os dias se passaram e nada de novo aconteceu; se há uma constante em minha vida, é (com certeza) a da incerteza. Até hoje não sei dizer se meu destino está fadado a ser como aquele de minha mãe.
“Muitos estão em situações piores”, alguém disse na tentativa de acalentar o azedume do meu coração que, segundo este alguém, “reclama de barriga cheia”.
Respondi tal interpelação afirmando que meu coração não tem barriga e que é justamente por isto que ele não se alimenta. Não sei onde quis chegar com uma resposta deste tipo: resposta que tenta comunicar o incomunicável. Se meu coração não tem barriga, então ele padece de fome ou de ausência de fome?
Sem resoluções para minha indagação, dormi de estômago vazio.
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É tolo, muito tolo. Ninguém sabe se nasce para brilhar ou para assombrar o dia e a noite.
“‘Ninguém sabe’, disseram”.
Acordei com este ruído, mais do que um ruído, com este grito que me fez pular da cama:
“‘NINGUÉM SABE’, DISSERAM”.
Perguntei-me: “O que ninguém sabe?”
E logo em seguida, num gesto reflexivo, respondi-me: Ninguém sabe se nasce para brilhar ou para assombrar o dia e a noite.
Perguntei-me: Quem disse “‘Ninguém sabe’, disseram”?
E logo em seguida, num gesto reflexivo, respondi-me: Não sei. Talvez a Fortuna tenha dito. Ou seria o Profeta? Ou seria a Esfinge? Ou seria o Oráculo?
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Então, mais uma vez, perguntei-me: será que, como Édipo, quero saber o que ninguém sabe?
Não sei se quero saber o que já sei; talvez queira esquecer ao invés de saber. Já disse isto mais de uma vez, mas repito aqui e agora: há, em minha trajetória, uma ancestralidade escusa, que insiste em se replicar em minha vida, que me assola com essa identidade de cabeça de estrela, de estrela decadente.
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Era Natal, o ano estava prestes a acabar.
E eu aqui, com essa crise existencial que não passa, com essa crueldade que carcome minhas entranhas estelares – pois, meu coração, embora não tenha barriga, tem boca: uma boca que aparentemente trabalha por compulsão e não por fome (tanto é assim que ainda não sei dizer se meu coração padece por falta de fome ou por muita fome).
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Eu Fracassei! Finalmente disse em voz alta. Disse a todos os presentes naquela ocasião.
Olhando para eles todos, cabeças de estrelas tão decadentes quanto eu, pensei: Fracassei e estou fracassando. Não há, em mim, brilho algum. Faz tempo que cansei de tentar.
Parei de pensar, parei de olhar na direção das outras estrelas sombrias e fui embora.
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No dia seguinte, o desespero do rompimento me assolou.
Repentinamente, rompi com todos e tudo. As chances de retomada são vagas.
Rompe-se para nunca mais retomar. Precisei romper com estes vínculos ancestrais – não para negá-los, mas para que eles parem de me perseguir, pois temo que meus fantasmas me tornem irreversivelmente miserável.
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Alguns dias se passaram e ainda sem entender por completo a razão de minha ação, recorri ao Oráculo.
Com minha cabeça de estrela decadente, escutei: “Vê que em teu destino está escrito que fracassas, mas não em todos os sentidos.”
Não diga mais nada! Imediatamente repliquei ao Oráculo. Se não for para me dar detalhes, não me diga mais nada. Já sei que fracasso, mas em que sentido?
O Oráculo soltou uma gargalhada e nunca mais me respondeu.
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No dia seguinte, acordei com uma expectativa típica de ressaca (tive que beber muito para me comunicar com o oráculo, eis o motivo da ressaca). Minha expectativa: como eu poderia, com toda e em toda a minha decadência, tornar-me alguém menos decadente?
De repente, cheguei à solução de minha aporia e pensei: preciso fracassar, esta é a minha única solução.
É no fracasso, no desvio moral e lógico, no econômico e social, que talvez (como Édipo), dominarei meu próprio destino. Toda estrela decadente sabe que a vida é uma tragédia, toda estrela decadente enfrenta a tragédia, de um jeito ou de outro, enfrenta a tragédia.
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Era uma vez, disseram, uma estrela decadente, que descende desgovernada no desatino de sua fútil crise existencial.
Onde está o otimismo? Perguntaram.
Respondi: Está no armário, trancado a sete chaves; eu o libero de vez em quando. Otimismo em demasia tende a ofuscar a estrela que não brilha em mim. Então, de vez em quando, meu otimismo resplandece, embora nunca se manifeste na forma de utopia.
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De mim para você,
Não sei como terminar essa história obsoleta, sem pé nem cabeça, que não nos leva a lugar algum. Não quero me despedir aqui e agora, sem mais nem menos, mas acho que já é hora, já é tempo de partir e de parar de me esconder. Você conhece todos os meus fracassos, mas ainda acredita em meus sucessos e isto é suficiente demais para mim, tão suficiente que chego a não merecer.
Desconecto a estrela de minha cabeça, deixo-a de lado, na prateleira acima de nossa cama. Sem a estrela que, até então, eu portava (como se fosse uma máscara), seus olhos não me identificam mais.
A luz sombria que emanava de meu espírito estelar se apaga. A pura e profunda escuridão toma o nosso quarto. Você acorda e eu não estou mais aqui. Perdi a cabeça e fui embora, subitamente, como surge essa história sempre prestes a desaparecer. Digo, pois, era uma vez…
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Fim.