Ruído

F.U.N.K: forma da univocidade natural korpórea

[vc_row][vc_column][vc_column_text]O Funk, a imanência da dança e um contexto. Que tipo de expressão sugere esse ritmo minimalista, quase tribal, que define todo um povo e uma cultura? Texto de Juliano Samways.


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“movimentos de um organismo que em si mesmo é pura expressão. A dança é, nesse sentido, a manifestação tanto do popular quanto do erudito, do pobre e do rico, manifestação de um corpo, de uma arte.”

[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]O filósofo alemão Friedrich Nietzsche dizia que só acreditaria em um deus que dançasse. Nietzsche exacerbava, transbordava em seus escritos, a instauração do modelo cotidiano do filósofo-artista, um pensamento poético em todas as instâncias da vida: essa é a arte maior. Formatou o que podemos chamar de uma poética da vida. Outros pensadores da cultura humana já atentaram para o valor da dança e sua conexão direta, imediata, com o corpo, uma arte corpórea, orgânica, fisiológica, movimentos de um organismo que em si mesmo é pura expressão. A dança é, nesse sentido, a manifestação tanto do popular quanto do erudito, do pobre e do rico, manifestação de um corpo, de uma arte.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]A dança que surge nas camadas mais baixas da população vive um momento de maior exposição no Brasil. O popular torna-se também moda. Nascido nos morros do Rio de Janeiro, o Funk Carioca é visto por uma grande maioria conservadora como uma dança de apelos meramente sexualizados, movimentos e gestos que trazem e fazem apologia a expressões de um erotismo meramente chulo e chucro. Mas o que está por trás destes movimentos, desta expressão de sexualidade? Faz-se necessário um olhar mais atento ao fenômeno dos morros, das favelas, das periferias cariocas, um olhar sobre essa dança particular que se universalizou no Brasil.

 

Patrocinados na sua origem pelos traficantes detentores da lei dos próprios morros, os bailes surgiram como uma forma de garantir certo entretenimento para os jovens desses locais. Garantem, ou garantiam, um local de venda e divulgação dos domínios das drogas. Obviamente desse solo criminal que parece infértil surgiram movimentos que em nada tem a ver com o tráfico, mas sim que parecem traduzir uma originalidade minimalista de música e dança. O mínimo, neste caso, é o máximo para essas juventudes periféricas no sentido horizontal.

 

Os meios de comunicação de massa, principalmente a internet nos dias de hoje, fizeram essa moda do funk ser compartilhada para o bem e para o mal, como todas as coisas que existem na rede. Todos começaram a apelar para o minimalismo da simples batida e repetição de um único verso que se torna toda música, e para, a partir disso, criar um hit, uma repetição sonora que é por si mesma o impulso da criatividade. O lema desses “homemades” é bolar um funk e jogar na rede, bem diferente da unidade original que o funk proporciona nos morros. Unidade que é o meio de socialização destas comunidades que, envolta pela atmosfera de um Rio 40 graus, só podem mesmo é dançar sem roupa e proceder as aproximações de sexualidade, de amizade, de dança presentes em qualquer outra atividade humana.

 

O capitalismo dança esse funk, e dança, obviamente, ao par do lucro que essa onda já rendeu. Esse sistema é também um aproveitador para o bem e para o mal, e criou vários subprodutos do funk, que é esse que visualizamos e criticamos no nosso dia a dia. Essa proliferação do funk é uma espécie de imanência da sexualidade e do prazer individual dentro do sistema capitalista. Imanência no sentido de que todas as expressões, todos os gestuais, as comunicações, o sentido que se dá no corpo, o corpo é seu em si e para si, o corpo é a redundância da realidade, tudo o que existe só realmente existe através do corpo. Daí o corpóreo que ultrapassa o nível da mera sexualidade, pois esta seria apenas uma das expressões de um corpo, uma em outras séries incomensuráveis desta imanência.

 

A questão da imanência do corpo pode ser filtrada de um problema mais elementar: tudo o que existe no mundo seria uma extensão, um apêndice do próprio corpo, um elo de conexão, uma abertura ao empírico? O corpo dos funkeiros possui uma abertura destinada a esse universo do entorno dos morros, o universo dos funkeiros da internet, a esse universo da repetição midiática, todos oriundos da imanência do corpo em torno do mundo. Definitivamente, a imanência é contrária a qualquer transcendência, a qualquer ideia de um e outro separados, dentro e fora, corpo e mente.

 

O funk juntou a venda da música com a venda do corpo. Essa venda casada, principalmente do corpo feminino, desencadeou uma série de debates politicamente engajados, feminismos, liberdade de venda da própria sensualidade. Mulheres objetos do funk, homens objetos de um comportamento criminalizado proveniente dos bailes.  Mas será que estas questões não seriam advindas desta mesma abertura da corporeidade com alcances midiáticos? Talvez nosso corpo seja a nossa maior mídia, e a dança apenas um meio de comunicação entre vários existentes. Velados ou à mostra, todos os corpos se comunicam.

 

Na imanência da dança, tudo dança. Por isso a dança de Nietzsche, por isso o cuidado em se instaurar preconceitos em imanências alheias, pois esta imanência é a do seu corpo também. Toda imanência é uma espécie de univocidade, uma só voz dentro de muitas vozes políticas, estéticas, eruditas e populares que gritam na linguagem do corpo, esta que deve ser uma linguagem natural.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

Juliano Samways
Professor de filosofia, autor, músico, estudante, ex-enxadrista, ex-filatélico.

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