Literatura

Uma coluna baseada em fatos reais

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“Se a literatura é ficção, não tendo um compromisso obrigatório com a verdade, qual é a intenção de se alertar o leitor/espectador com esse grave aviso, baseado em fatos reais?”

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          Ou seja, leve muito a sério o que aqui se conta. Talvez dramatizemos um pouquinho, mas tratamos da mais absoluta, pura e incorruptível verdade.

 

          Pois há, surgida de algum lugar ainda oculto para nós, a noção de que uma obra ‘baseada em fatos reais’ trate de uma verdade mais verdadeira do que a obra de ficção, que seria, por oposição, uma obra de não-verdade – quais seriam os melhores termos para essa obra de não-verdade? Talvez invenção, mentira, imaginação?

 

          Com efeito, qual seria a verdade histórica da guerra de Tróia narrada por Homero? Ou das vidas dos Césares narradas por Suetônio?

 

          Sabe-se que os antigos biógrafos embelezavam e perfumavam – ou degradavam, se quisessem – as vidas dos seus biografados, com a intenção de convencer o público de que seu personagem ‘histórico’ era digno dos feitos que a ele se atribuíam, que sua linhagem descendia de seres divinos, que ele era capaz de feitos miraculosos. A Vida de Alexandre, nas Vidas Paralelas de Plutarco, por exemplo, cita a história do incêndio no templo de Artêmis. De acordo com Hegésias de Magnésio, “não era estranho ter-se queimado o templo, estando a própria Artêmis ocupada em assistir ao nascimento de Alexandre”. Oras, não estaríamos aptos a nos escandalizar caso nos confrontasse a seguinte inscrição na capa do best-seller de Plutarco: baseado em fatos reais.

 

          De que verdade estamos tratando quando se pensa em fatos reais?

 

          Luciano de Samósata, autor antigo que nasceu em 125 d.C. dentro do Império Romano, na região que é hoje a Turquia, desafiou a ‘verdade ficcional’ apresentada por muitos dos seus contemporâneos – pois eram, oras, claramente uns embusteiros, narrando mitos e relatos fantásticos como verdade – e escreveu as Narrativas Verdadeiras. Tais histórias, sátiras de narrativas como as que citamos mais acima, trazem o seguinte parágrafo¹, após o autor dizer de maneira clara que “ao menos nisto direi a verdade: ao afirmar que minto”:

[/vc_column_text][vc_row_inner][vc_column_inner width=”1/4″][/vc_column_inner][vc_column_inner width=”3/4″][vc_column_text]”Escrevo, portanto, sobre coisas que nem vi, nem sofri, nem me informei por outros e ainda sobre seres que não existem em absoluto e nem por princípio podem existir. Por isso, aqueles que por acaso se depararem com estes escritos não devem de forma alguma acreditar neles. (Livro I.4)”[/vc_column_text][/vc_column_inner][/vc_row_inner][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Obra de grande influência no mundo ocidental, encarada hoje como a primeira ficção-científica da história, as Narrativas Verdadeiras contam estórias como a da viagem para a Lua e a descrição dos seus habitantes. Lá não existem mulheres, e todos os homens, até completarem a idade de vinte e cinco anos, desposam outros homens, concebendo posteriormente um feto na panturrilha, que nasce morto mas vive ao ser exposto ao vento com a boca aberta.[/vc_column_text][vc_single_image image=”3859″ img_size=”large” alignment=”center”][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]

          Cumpre-se uma verdade aqui, a da mentira.

 

          Intitulando-se o trabalho como Narrativas Verdadeiras, Luciano estampa na abertura de seu filme: baseado em fatos reais, e ironiza uma multidão de autores claramente mentirosos, que propõem ser verdade o que não é; que brincam com a noção de verdade ao apresentarem materiais míticos e mágicos que vestem a roupagem da verdade por meio de um personagem extravagante e obviamente ficcional.

 

          Se a literatura é ficção, não tendo um compromisso obrigatório com a verdade², qual é a intenção de se alertar o leitor/espectador com esse grave aviso, baseado em fatos reais? Talvez, eu diria dando um passo mais longo que a perna, que tudo que se escreve ou que se conta está baseado em fatos reais, não? Desde a Guerra de Tróia até a descrição de como são os habitantes da Lua; desde o vencedor do Oscar, Spotlight: segredos revelados, até a Bruxa de Blair; desde a Vida de Alexandre de Plutarco até o filme Steve Jobs. Oras, de acordo com os nossos caros biógrafos da Antiguidade, o que é estar baseado em fatos reais?

 

          Imbuir sinceridade na narrativa? Verdade?

 

          Dramatizar, espetacularizar, glamourizar um fato: nada disso estaria distante das mentiras míticas dos biógrafos antigos, na intenção de divinizar o protagonista, tornando fatos mundanos em poesia, seja o mesmo com Stephen Hawking ou Steve Jobs, ambos reis do contemporâneo que já ultrapassam a mera esfera do humano.

 

          O escritor irlandês Keith Ridgway, neste artigo publicado pela revista The New Yorker em 2012, fala sobre como todos nós convivemos com a constante ficcionalização do nosso próprio dia-a-dia, narrando nossa vida, nossas conversas, rememorando feitos que julgamos importantes, sempre por meio da ficção. Pois, mesmo em pessoas que não se absorvem da ficção – ou do pensamento ficcional – vivendo uma vida técnica, prática, esta ficção ainda é tudo, é o sentido de nossas vidas que se constrói ao ser narrado, recontado; é revivido ao ser recontado, pois adoramos falar aos outros sobre nós mesmos e contar as nossas histórias.

 

          Pois, enfim, que história é a que se conta quando ela é baseada em fatos reais? Não são todas?

 

          Mais do que isso, que Verdade é a que se conta dentro da Ficção?

 

          Qual era a verdade de Homero dentro da Ilíada? Talvez, eu imagino, seja a verdade do Homem enquanto raça, a verdade da narrativa de uma humanidade, de um coletivo, que pode ser ainda melhor compreendido dentro dessa obra ficcional, tanto na de Homero quanto na de Luciano de Samósata, ou nas que contamos diariamente. A vida de um homem em seus sentidos mais íntimos se expandem, tornando-se literalmente um livro aberto. E a dramatização faz parte do jogo, um jogo de quem somos, um jogo em que o espectador/leitor decide se joga ou não joga, se aceita ou não aceita que aqueles fatos, narrados ficcionalmente, representam uma verdade real.

 

          Afinal, que bugalhos importa se a obra está baseada em fatos reais?

[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_text_separator title=””][vc_column_text]¹ – Na ótima tradução de Lucia Sano apresentada em sua dissertação pela USP, em 2008.[/vc_column_text][vc_column_text]Link para o trabalho aqui.[/vc_column_text][vc_column_text]² – E eu peço perdão a quem gostaria de uma discussão aprofundada sobre o tema da ficção, mas ela não cabe aqui.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_text_separator title=””][vc_column_text]P.S.: filmes de terror/suspense e filmes de tragédia costumam trazer esse “aviso de realidade”, alertando seus espectadores de que o que se narra ali também acontece no mundo real, e que todos nós estamos sujeitos a perecer como os trágicos heróis da telinha. Estratégia de marketing um pouco pobre, eu acho. O que seria mais chocante do que a vida em si, desadornada de todos os seus adereços artísticos, dos belos recatos da ficção?[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][/vc_column][/vc_row]

Vinicius F. Barth
Doutor em Estudos Literários pela UFPR. Tradutor das Argonáuticas de Apolônio de Rodes. Escritor e ilustrador. Autor do livro de contos 'Razões do agir de um bicho humano', (Confraria do Vento, 2015) e do livro de poemas e ilustrações '92 Receitas Para o Mesmo Molho Vinagrete' (Contravento Editorial, 2019). Ilustrador de Pripyat (Contravento Editorial, 2019). Estudante de saxofone.

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