Literatura

Das laranjas

[vc_row][vc_column][vc_column_text]

Imagem: Yves Klein – Expressão do universo da cor mina laranja (1955)

[/vc_column_text][vc_column_text]Entre o ácido aroma das laranjas e a umidade das possíveis lágrimas e da provável tempestade. A estreante Clarissa Comin inaugura a coluna de Literatura em 2018 com seu belo conto ‘Das laranjas’.


[/vc_column_text][vc_column_text]

“Súbito, seus olhos secos fincaram nos meus, um grito agudo, um pedido de socorro… na desistência dos excessos, sorríamos enquanto as palavras esperavam ser recicladas.”

[/vc_column_text][vc_empty_space height=”52px”][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]I.

 

É praticamente verão, mas não lhe ocorreu pendurar as roupas no varal, esqueceu-as no fundo da máquina. Deveria, pois era dia de aproveitar o ar seco que suga a pele retesada dos lençóis e outros trapos, maculados por manchas amorfas e curiosamente úmidas – sua presença, sua ausência, um silêncio cósmico. Ao invés disso, espantou para longe os farelos sobre a toalha da mesa, levou os lixos para fora, deu de comer ao gato e partiu rumo ao mercado, comprar laranjas.

 

I.II

 

Na verdade não foi assim de pronto: chegando ao portão se deu conta de que o dinheiro no porta-moedas não seria o suficiente. Naquele bairro a carestia sangrava os remediados ali intrusos, pois era o reduto dos homens ricos, como aquele que minutos antes saiu pelo portão de sua casa.

 

I.III

 

O nome dele era Mário. Falava pelos cotovelos e mesmo dormindo sonhava novas palavras: para precisar o abstrato, para nomear as formas geométricas de corpos celestes, para não calar as atrocidades das guerras que presenciou. Mário era vapor sublimado, pesava bem mais que seus oitenta quilos, ponto de fusão desconhecido. Mário desaparece ao menor contato físico, bomba de fumaça colorida, um show de pirotecnia, efêmero feito esses ano novos de litoral.

 

II.

 

E comprar laranjas!

 

Quando criança inquietava-me a palavra laranja, sua ambiguidade. Como era isso de poder qualificar cometendo pleonasmo? Uma laranja laranja – primeiro adjetivo que me passava pela cabeça, porque doces elas nunca eram.

 

Não só em português, mas em outras línguas o vocábulo laranja é o mesmo para fruto e cor. Geralmente a grafia e a pronúncia assemelham-se bastante: Orange(al.), orange (ing.), orange (fr.) naranja (esp.). Mas em italiano, uma surpresa: arancione e arancia – cor e fruto. Cisão da ambiguidade, ruptura da lógica dos sentidos. Me senti tola por ter imputado ao mecanismo de repetição uma inerência etimológica.

 

Para toda exceção há sempre uma regra.

 

Desenvolver uma economia dos corpos. Seria bom se pudéssemos fazer isso com todas as cores, designar cor e algo mais: verde-planta; azul-céu; amarelo-banana; vermelho-desespero; violeta-saudade; nos mundos que desconheço, deve ser assim.

 

Economia e subdesenvolvimento: suco de laranja envasado: nossa melhor manufatura

 

III.

 

Prometer um novo dia para si e cumprir, pois bem, começar com o pé direito – podar a mudinha de laranja, presente de um vizinho daltônico, quem sabe próximo ano não as colho direto do pé? –, pois agora faz sol.

 

O supermercado fica a duas quadras de distância, até a feira é o triplo do caminho. Quem sabe com quantas sacolas vou voltar? Sim, vamos ser práticos, optimizar o tempo.

 

Foi.

 

Ao mercado, mas foi.

 

O primeiro passo para a vida após a morte são esses templos atemporais, parentes esquálidos dos shopping centers. Por que diabos pensava naquilo? Estapafúrdio. De repente estava fora de si, observava-se pelas costas, a contragosto. Uma ficção científica sem precedentes: todos os supermercados amanhecem vazios, assim ficam durante meses, até que as máquinas, vestidas feito gente, começam a comercializar insetos sintéticos.

 

Ultimamente era o que acontecia: bastava se distrair um pouco, no trânsito, na academia, no trabalho, e via-se impossibilidade de pensar em primeira pessoa; punha-se a maquinar histórias e se inventar memórias. Seria Mário real?

 

Catou as laranjas numa pilha desequilibrada e correu até o caixa. Bom dia, não tenho interesse, é no débito, brigada, até mais.

 

Ufa, estou quase em casa!

 

III.I

 

Do lado de fora!

 

Finalmente, podia respirar a salvo. Fazia sol, muito. Cobriu a cabeça com um lenço comprido, laranja, comprado em Málaga – onde agora faz onze graus –, antiga colônia grega e hoje abarrotada de prédios à beira-mar, como qualquer cidade do litoral brasileiro.

 

Lá provei uma pimenta malagueta de doer nos nervos; segundo os habitantes locais era o melhor remédio para refrescar-se do calor; foi onde conheci Mário e sua paixão sem trégua, naquela época espessa e opaca, sem escalas.

 

Amei-o de pronto mas ele, em silêncio, insistia em revolver-me os cabelos teimosos, caindo-me sobre os olhos, apontando para o porto mais antigo do mundo, em pleno funcionamento, três mil anos de variedades – abóboras, pêssegos, laranjas e manufaturas de almofadas.

 

Querida, é preciso ter vontade de aprender as cores do mundo, entender seus sistemas químicos de cheiros e contrastes. Sabe que a tinta a óleo revolucionou a pintura? Os melhores pintores deram suas vidas em busca de uma cor, tal qual o bom poeta faz por suas palavras.

 

Quase sentimental, marejavam-lhe os cantos dos olhos, espantava-me a possibilidade de vê-lo chorar! E, súbito, recuperava-se, endireitava a gola retorcida, passava os dedos pelos cabelos e impostava uma voz viril para chamar o táxi.

 

IV.

 

Sim, são algumas quadras até chegar em casa.

 

Preparar um suco de laranja (aqui dizem laranjada, porque o de limão é limonada). Acidez desregulada, cada safra é um mistério em garrafas; Bolo de laranja! É sempre o mais barato, foi meu lanche da escola durante anos, isso e uma garrafinha d’água, comia escondida com as ovelhas, numa dessas escolas-fazenda; salmão com molho de laranja e alcaparras: um almoço de fim de ano, remediado, financiado pelos chefes; hifi: vodca e refrigerante a base de laranja, já sai tirando a roupa, se arrependendo… dois desses e o sono já não vem; a cara: só o bagaço da laranja (na falta do maracujá de gaveta); L’orangerie: Cézanne e suas mesas impossíveis, obcecado por maçãs e pêssegos, pois as laranjas eram-lhes escassas; na Europa já era fato consumado que as frutas fora da estação custassem caro como diabo – pois vindas de longe, murchas e emb O l O O oOO OOO  oooo O OO O O O O ooooooo o – uma atrás da outra, meio-fio abaixo, tento recolhê-las, patética, quando a carreta se aproxima a toda velocidade e espreme-as numa conversão proibida à esquerda.

 

Desabo no meio fio, bagaços.

 

IV.I

 

Mário era um par de anos mais jovem do que eu e nas nossas brigas não perdia a chance de me ofender com algo que explicitasse minha velhice diante de sua infalível juventude. Bagaço era um termo recorrente, os outros esqueci, eram gírias cafonas lá do povoado de onde ele vinha. Nunca abri a boca para ofendê-lo, para esfregar-lhe na cara meu salário e meus diplomas, não, isso nunca. Mário era um gênio atormentado e meu maior sonho era vê-lo produzir a grande obra, um misto de Cézanne com Paul Klee, dizia, todavia faltam-me as cores! Mas nada, apenas ócio e marasmo combinados com a secura de sua paleta, esquecida em algum banco de praça dessa tórrida cidade. Na verdade eu não sei por que diabos ainda sinto saudades de Mário se ele é um otário e só serve para ser rima ruim.

 

V.

 

No meio-fio, clivada por dentro e por fora, um pedido de socorro não faria o menor sentido. As elucubrações filosóficas de outrora eram substituídos pelo pânico diante das laranjas e sacolas estraçalhadas, irreconstituíveis.

Salta um senhor grisalho da carreta, esbaforido, agacha-se ao meu lado, perguntando. A senhora está bem? Machucou? Ah, foram as laranjas? Ainda bem! Que coisa, né? Pois então, errr, olha, posso oferecer uma carona? É muito longe daqui? Vai chover, hein!

 

A solicitude me ofendia. Ora essa, pareço precisar de ajuda? Não estaria em condições de caminhar? De qualquer modo, ainda faltava tempo para a chuva…

 

V.I

 

Essas moças de hoje em dia não querem mais saber de gentileza não, viu. Olha aí, Deus é testemunha, eu querendo ajudar e ela nem aí.

 

A última vez que vi a senhora minha mãe ela estava coberta por uma manta oferecida pelo hospital, eu tinha três anos. Se afogou no rio Paraguai depois de um pôr do sol, lindo de doer, disseram que o juízo dela não aguentou o brilho daquele monte de cores – invisíveis a olho nu, uma frequência sensível apenas aos cães. Depois eu não lembro, fui passando de mão em mão, criado pelas caridades alheias, demorei para começar a falar, era tímido e me faltava companhia para a prosa.

 

VI.

 

A chuva vinha, sim, eu respeitava os relâmpagos lilases e azuis, mas não passava a fixação no laranja. Sim, uma cor ordinária, feita de amarelo e vermelho. Não, jamais cor de olhos – cabelos, talvez, com a ajuda de bastante água oxigenada. É, esmalte tem, chamam de Rio 40 graus, deve ser o que os cariocas vêem no horizonte a partir do meio dia.

 

A senhora sabe que estamos em época de laranjas tardias, essas que chamam de laranja-pêra; crescem em qualquer lugar, sessenta centavos o quilo, revendemos pelo triplo, sim, mas para crescer precisam de quentura, que nem a daqui. Doce, doce, eu não acho, talvez mais ácida, por isso prefiro a lima, o pé de planta do menininho do livro, né? Laranja-bahia? Vocês preferem porque vende mais? O Mário costumava comprar toda semana, dava para descascar sem usar faca, saía tudo com os dedos. É, mas só dá começo de ano, safra irregular, custa caro, já viu… Confundem, mas não é a mesma coisa que mexerica ou tangerina. E aqui, vocês chamam como? Clementina é um transgênico, a senhora sabia? De laranja com tangerina; lá na Europa deu certo, eles não têm medo de câncer que nem aqui. Morrer todo mundo morre, pior é morrer sem sal, de desgosto.

 

VI.I

 

A moça parece desgostosa, eu queria perguntar o motivo, mas fico sem jeito. Esse povo da cidade é muito armado, me sinto cutucando vespeiro, mas faz falta uma amizade, não vou mentir, não. Desembestei a falar tolices, até de laranja, que eu odeio, pelo menos valeu de alguma coisa meu serviço de fruteiro – é assim que vocês chamam por aqui? Tem uma coisa no jeito dela olhar, verdade, parece a mocinha do cinema antes de se matar, lembra mamãe, sei lá, o que eu ainda consigo lembrar dela. Poucas palavras, sim senhor, como disse, aprendi a falar tarde, dou nó em pingo d’água, me arranjei com a cartilha da escola e os livros emprestados pelo pároco.

 

VII.

 

Desgosto. Os lábios do homem moviam-se em câmara lenta e a saliva grossa ia se acumulando no canto da boca – o que me dava um misto de nojo com nervoso, pois não podia avisar e muito menos secar-lhe a crosta branca. O Sol descia numa velocidade incrível e eu não via o tempo passar, enredada na conversa, ou partes dela, o olhar fixo na língua morosa que batia nos dentes antes de exalar algum som.

 

Eu posso ser só um quitandeiro, mas consigo sentir as coisas que acontecem na terra, coisas que vocês não vêem, sim senhora, sou sen-sí-vel! E daqui uns cinquenta anos, acha que ainda vão ter laranjas? Nada! Querem só ganhar dinheiro, fazem experimento por cima de experimento, quando vai ver nem sabe mais o que era a matéria-prima e fica por isso mesmo, a gente se acostuma com os corantes, com o aroma artificial idêntico ao original… a senhora sabe que o fim do mundo começa com esse calor, a estiagem, com esses dias de inferno que só faltam não acabar, não sabe?

 

Quando dei por mim estávamos no meio-fio, sentados na calçada, olhando feito tolos para as vísceras expostas das minha laranjas, natimortas. Sua voz tornava-se cada vez mais inaudível – ou agora ele chorava?  – é, chorava. Na falta dos sons inteligíveis concentrei-me em suas mãos, elas também de um laranja cáustico, sapecado por anos de sol a sol, presumo; espantava-se com a minha paciência, espantava-me com a minha coragem, de permitir aquele homem ser e despencar em lágrimas cremosas, turvas, não diria cor de leite, talvez pegajosas. E esse choro contornava-lhe o rosto, aplacando o ardor de uma tarde inteira à toa, gasta com uma senhora voluntariosa que não sabia a diferença entre hortifrúti e quitanda.

 

VII.I

 

Mário jamais chorou. Mário foi todos os estados da matéria, menos o mais previsível, líquido, proibia-se as lágrimas, alcançava-as de esguelha, via sublimação. E agora, olhando bem para aquele senhor exposto, como os bagaços das laranjas, e comovendo-me com a verdade de seus sentimentos, entendia que ir à feira para buscar laranjas era apenas mais uma das variações do meu transtorno em esquecer Mário via abstração.

 

VIII.

 

E o silêncio nos embalava como um sonho bom, entrecortado pelos soluços agora imperceptíveis – ninguém sabia o que dizer, muito menos se devia dizer; experimentei distraí-lo, apontei com o indicador para o horizonte: era o pôr do sol, imenso e redondo, listras desencontradas convergiam para oeste, atrás das duas torres. Éramos inundados pela lava escarlate, escorrendo por detrás dos prédios e das árvores retorcidas. Súbito, seus olhos secos fincaram nos meus, um grito agudo, um pedido de socorro… na desistência dos excessos, sorríamos enquanto as palavras esperavam ser recicladas.

 

Sustentei o olhar o quanto pude e no vacilo de quem não deixa de pensar, lembrei do Apocalipse, das chamas que varreriam a Terra, dos horrores de todas as guerras, das armas físicas e químicas, crianças deformadas correndo sem rumo pela estrada.

 

Ele está de pé e oferece-me as mãos para que eu também possa levantar, seus lábios tremem: queria dizer alguma coisa? Como? O meu semblante de morte deve tê-lo refreado, sou campeã em reprimir.

 

Súbito, sobe na carreta e arranca em disparada. Juro ter ouvido alguma coisa. E houve?

 

Por educação, recolho o que resta dos destroços e tenho a sensação de já não ser mais eu, de não coincidir com esse corpo abandonado pelo mundo.

De repente é noite. Pingos grossos espetam-me o dorso, ensaio corrida, desisto. É tempestade.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

Clarissa Comin
Clarissa Comin é doutoranda em Estudos Literários na UFPR e professora de língua francesa. Tem traduções e textos publicados em revistas como Qorpus, Mallarmagens, Canguru e Germina. Em 2018.1 vai publicar sua primeira ficção, vasto trovarr. Nasceu em Fortaleza e reside resignadamente na República de Curitiba.

    You may also like

    Leave a reply

    O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

    More in Literatura