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Rubricas de uma coluna para ser assistida

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Imagem: Paolo Scheggi – Traccia movimento

[/vc_column_text][vc_column_text]Uma coluna para ser assistida. Recomenda-se um assento confortável, um bom equipamento, uma bebida, um petisco, e breves doses de falta de discernimento e um pouco de mistério. Por Vinicius F. Barth.


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“Entre seus dedos as teclas são requebradas furiosamente em velocidade mach-3 ultra muito sônico, mas as hastes de cada letra levantam-se em super slow-motion, visual especialmente bonito quando visto em HD.”

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Essa coluna deve ser assistida no formato 16:9, em 720p ou 1080p, colorido, 30fps, som estéreo, obviamente.

 

Os personagens mais interessantes, para mim, são estáticos quando vistos de fora, mas carregados, por dentro, de uma paixão avassaladora.

Andrei Tarkovsky

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Três rubricas de ações possíveis para cena:

[/vc_column_text][vc_column_text]1. [Som ambiente. Movimento, falas, negócios, business coaching enterprise. Um jornal ambientado romanticamente no tempo das máquinas de escrever. Um homem de traços orientais {o público desconfia ser chinês} trabalha ali. Ele está no centro do cenário, que não está claramente delimitado pela tela que imaginamos para a cena. Um colunista diário, um bravo jornalista de assuntos corriqueiros. Poderia ser de resenhas literárias, horóscopos, universo musical da cena local, ou o raio que o parta. Tip. Apaixonou-se pela futura esposa no último março. Já em julho teve uma ideia: a de codificar secreta e solitariamente uma carta para ela no meio de suas mágicas colunas corriqueiras, tal intempérie digna de gênio, diríamos. Tip. {A cena fecha-se lentamente sobre o hemisfério direito do seu cérebro, perto da nuca.} A ideia brotou e floresceu quando seus fones de ouvido transmitiam Harder, better, faster, stronger, de Daft Punk {play} via rádio AM na hora do almoço de uma segunda-feira nublada. Iniciou a nova coluna às 13h32, digitando duplamente a letra ‘V’, a capital, no início do texto. Ato simbólico. Seria o início do código, uma nova era em sua rotina abominável de teclados pouco transcendentes. Tip tip. Escreveria uma carta através de cada letra inicial, gloriosamente capital, de suas colunas. Cada coluna, uma letra. Sempre a Capital-capitular. Certamente sua amada entenderia. “VAMOS JANTAR NO FRATELLO’S DIVINE”. Levaria semanas, mas valeria a pena, é o melhor restaurante da cidade. Até lá dá pra guardar dinheiro. Tip. Entre seus dedos as teclas são requebradas furiosamente em velocidade mach-3 ultra muito sônico, mas as hastes de cada letra levantam-se em super slow-motion, visual especialmente bonito quando visto em HD. Como estão polidas e recém-limpadas com espanador de penas de aves do paraíso, as hastes reluzem os raios de sol do fim de tarde, que entram pelas frestas da persiana e se refletem em direção à tela. Apenas a Capital importa nesse texto e nesse papel, o resto continua sendo bobagem. O radinho de pilha da faxineira que varre ao lado toca Hung up, de Madonna {play}. Tip. No dia em que finalmente alcança o “R”, o plano vai por água abaixo. Sua amada o espera na entrada do edifício e o convida para almoçar no ‘Ói que beleza! – gastronomia responsável’. A cena fecha-se de maneira irônica e gloriosa sobre as mãos do casal, que estão unidas sobre um pratinho que contém duas empadinhas de berinjela. Tip tip.][/vc_column_text][vc_text_separator title=”♦♦♦”][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]2. [Silêncio. Abrem-se as cortinas. Um jovem filólogo oriundo da Universidade de Salamanca passeia pelo bairro das Mercês segurando um taco de beisebol. Anda por algumas quadras até encontrar um carro de cor indeterminada com alguns adesivos indeterminados na traseira. Sabemos que nos intervalos do seu trabalho de pesquisa, o jovem ocupa um cargo de hitman, um capanga, um notável mercenário, para o salafrário Mervin, o embusteiro que frequenta o bar do Pau para realizar negócios ilícitos e pegajosos via celular pré-pago. O jovem filólogo para, encarando a traseira do carro, certificando-se de que é o alvo transmitido via whatsapp pelo embusteiro Mervin. Liga o som do celular e em seus ouvidos soa Can’t get you out of my head, de Kylie Minogue {play}. Passa então a se mexer em câmera lenta, com graça, gira com o taco na mão como uma bailarina metaforicamente bélica, dublando ao mesmo tempo a música que toca em sua mente. Arrebenta completamente o veículo, que tornou-se definitivamente preto. Os estilhaços voam para todos os lados, voam em direção à tela, todos em HD, infinitamente belos e passando em câmera lenta enquanto a bailarina bélica desmonta parte a parte o corpo sombrio do automóvel. Os raios de sol repicam nas fagulhas de vidro. A faixa se repete duas vezes. A ópera do estilhaço e da ruína segue sem nenhuma interrupção, numa execução impecável e comovente. BIS. No fim ele se senta no meio-fio ao lado, acende um cigarro. Um facho de luz branca desce sobre ele, mas não pode ser visto porque é um dia de sol. No modo random, sua playlist cai deliciosamente em Revenge, de Patti Smith {play}. Ele se dá conta, enfim, de que conhece o veículo. Não sabe os motivos pelos quais o embusteiro Mervin encomendou tal serviço. Pode-se ver toscamente um dos adesivos na traseira estuprada da máquina; não se pode distinguir se é de uma banda, talvez dos Beatles ou dos Bee Gees {afinal, pode-se ler apenas BEÆ}. As cortinas do palco, que de algum modo estão colocadas ao seu redor no meio da rua, fecham-se o mais lentamente possível, mas sem ser em slow-motion. A cena voltou a se passar em velocidade natural, embora esse “natural” seja completamente contestável.][/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”♦♦♦”][vc_column_text]3. [A cena se abre quando eu abro os olhos. Faço isso numa velocidade média. Estou na beira da calçada, prestes a atravessar a avenida. Garoa pesadamente. Um homem de terno preto e valise na mão se aproxima da calçada oposta para atravessar a mesma esquina. Toda a cena é vista em primeira pessoa. Um close em seus olhos. Em meus fones de ouvido ouço Creep, dos Stone Temple Pilots {play}. O asfalto molhado reflete as luzes vermelhas do semáforo. O homem me julga imediatamente, tomando-me por um inconsequente juvenil. Fala-me, pelos olhos, a respeito de sua carreira, ressalta o valor do terno com um leve movimento de cabeça; sua valise, que gira poucos centímetros ao redor do eixo do pulso, contém os segredos e os atalhos para milhares de vinténs. A garoa cada vez mais pesada cai cada vez mais devagar, até alcançar uma velocidade ultra slow-motion, de modo a poder-se caminhar por entre as gotas, que refletem em milhões de pontos luminosos aquele vermelho do semáforo, que persiste em resistir. De súbito, tornam-se verdes. Eu e o homem caminhamos em direções opostas. A cena, nesse momento, é vista de cima, e encaramos a faixa de pedestres encharcada e pisoteada por dois corpos de vestes escuras que se aproximam. Tudo passa a ser, por alguns minutos, em câmera lenta. Quando estamos a menos de um metro de distância, nossa cena volta para a primeira pessoa. Abro os olhos molhados e ele está ali. Quando estamos prestes a nos cruzar, seu semblante se altera quase que imperceptivelmente. O homem me inveja. Me conta com os olhos, sem muitos detalhes, a respeito de sua esposa, que partiu, e da amargura violenta de seu sócio, corrupto, e de seu filho, e da epiphone les paul lp100 que foi vendida há muitos anos. O homem me inveja comoventemente enquanto estamos envoltos por milhões de vagalumes verdes que caem lentamente para a morte certa no asfalto, quando se juntarão a um grande e único corpo que escorrerá para o ralo do mundo. Ele inveja a minha inconsequente juventude e a minha pobreza, e chora em velocidade natural, o que se distingue claramente dos lentos vagalumes verdes que são belíssimos quando vistos em HD numa tela grande. Nos ultrapassamos enfim. Meus fones tocam Corduroy, do Pearl Jam {play}. Fecho meus olhos num lento fade-out sem enxergar a calçada oposta. Fim da cena.][/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

Vinicius F. Barth
Doutor em Estudos Literários pela UFPR. Tradutor das Argonáuticas de Apolônio de Rodes. Escritor e ilustrador. Autor do livro de contos 'Razões do agir de um bicho humano', (Confraria do Vento, 2015) e do livro de poemas e ilustrações '92 Receitas Para o Mesmo Molho Vinagrete' (Contravento Editorial, 2019). Ilustrador de Pripyat (Contravento Editorial, 2019). Estudante de saxofone.

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1 Comment

  1. Adorei os textos e por alguma razão obscura principalmente a descrição “polidas e recém-limpadas com espanador de penas de aves do paraíso”, Vá saber por quê?

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