Ruído

O Kafka de Aberdeen

Imagem: Joel-Peter Witkin – Las Meninas (Self-Portrait after Velázquez), 1987

A história de um século inteiro contada na coluna Ruído desse mês, por Juliano Samways. E talvez, imaginando no fundo da mente alguns acordes de guitarra, você saiba bem de quem ele está falando.


 

“Como um bicho matreiro, rato dentro do buraco, inseto na lâmpada, nosso personagem arquitetava seus sonhos e ambições através da música, pois ali estava para ele a grande linguagem do universo, o sem sentido puro que fazia sentido.”

Grandes artistas enfrentam a falta de sentido do mundo o fortalecendo com uma falta de sentido ainda maior. Declinam ao aceitar a realidade como está posta empunhando uma força poética que é perturbadora. Debochando de todas as convenções, escrevem com sangue suor e biles as novas entrelinhas do texto por todos incompreensível.

Numa manhã escura, azeda, sem sentido, nasceu nosso pequeno Franz. Kafka anteviu o fim da humanidade como fim do sentido do ser humano. Anteviu isso escrevendo alguns versos musicais enquanto seus pais brigavam aos gritos e o leite fervia transbordando e queimando na cozinha. Sua pequena casa, cortiço dialeticamente dividido entre os familiares e visitantes junkies de plantão, tornou-se um local sagrado, o templo da insensatez.

Como um bicho matreiro, rato dentro do buraco, inseto na lâmpada, nosso personagem arquitetava seus sonhos e ambições através da música, pois ali estava para ele a grande linguagem do universo, o sem sentido puro que fazia sentido. Uma tragédia resolvida nos programas matinais ao cabular uma aula: “Mamãe e papai nem notavam!”. Sacaninha que era, assistia sempre a MTV, acompanhava intensamente as séries de heróis que morriam na overdose do tédio.

Kafka, ao tentar seu primeiro emprego, presenciou o alvorecer da burocracia infinita de um mundo finito: quatro formulários, três vias, duas testemunhas. Pena que esqueceu de assinar o canhoto do aviso prévio quando da labuta foi mandado embora…”Ai de mim que nunca recebi seguro desemprego!”. Ainda assim, sem trabalho formal, formou sua primeira banda, pagou sua primeira prestação, cuspiu e foi cuspido em seu primeiro amor punk.

Franz, assim como em “Na colônia penal”, viu a punição do prisioneiro ser talhada de tinta em sua pele branca, retinalínea azul, morreu nas últimas letras, viveu novamente na agulha de heroína que tingiu seus sonhos. Lembrou dos livros lidos e nunca entendidos, das voltas dadas sempre no mesmo bairro, das conversas de redenção que com seus pais nunca tivera.

Ao desvendar as brechas da falta de sentido, acabou por preencher um abismo entre o tudo e o nada de quem atentamente escuta um conto, ou de quem despercebidamente lê uma música. No mix manifesto dos sentidos apaga seu cigarro. Como seus dedos nunca amarelaram de nicotina?

Nosso personagem não sabia quem era, pois sua identidade era a alteridade da letra e música. A cada manhã entrava na fila interminável para levantar da cama. Mas enquanto esperava, enquanto aguardava ser sorteado pelo bilhete da vida, sonhava sonhos de música, cantava cantos de silêncio.

Renunciou de forma franciscana o sabor das massas. Não gostava de se ver como seus antigos heróis. Sua morte era aparecer na TV. Desligou o plug.

Renasceu como um uber-insekt em uma iluminada parede na escuridão resplandecente do quarto.

Apreciava muito o isolamento. Novamente era feliz. Da parede do quarto, depois de algumas doses de lithium, observava a bipolaridade do mundo na esquizofrenia dos povos. Barrado do almoço de domingo, comentava que a briga familiar não é um teatro de Édipo, maldizia Freud por não apontar o artropodecentrismo como a essência do ser: meu mosquito, my libido?

Vai dizer que o Senhor K. não é o senhor Kurt?

A dimensão artística de uma obra iguala existências desiguais. O outro e o mesmo se tornam iguais em iguais manhãs cinzentas. Kafka morreu aonde havia nascido. Com alguns acordes de guitarra em sua odiada Aberdeen, soluçou baixinho a falta da falta de sentido…. hello, hello, hello, how low……

O Kafka de Aberdeen era o Cobain de Praga.

Juliano Samways
Professor de filosofia, autor, músico, estudante, ex-enxadrista, ex-filatélico.

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