Ruído

Nostalgic Fashion

Imagem: Wim Wenders – cena do documentário Tokyo-Ga (1985) em que são mostrados grupos rockabilly e de revival dos anos 1950 num parque de Tokyo.

 

A Nostalgia como produto e o alto preço que se paga, por isso, dentro da produção cultural atual. O primeiro Ruído de 2018 por Vinicius Ferreira Barth.


 

“O fim das coisas é melhor do que o seu início, e o paciente é melhor que o orgulhoso. Não permita que a ira domine depressa o seu espírito, pois a ira se aloja no íntimo dos tolos. Não diga: “Por que os dias do passado foram melhores que os de hoje?”

 

Pois não é sábio fazer tais perguntas.

 

Eclesiastes 7:8-10

 

O termo “nostalgia” foi cunhado apenas no século XVII para descrever mercenários suíços que batalhavam longe da pátria. A nostalgia era então vista como uma condição médica, um tipo de melancolia. Forma-se pela união das raízes gregas νόστος (nóstos: a ideia homérica, presente na Odisseia, de “jornada de volta ao lar”) e ἄλγος (álgos: dor, sofrimento). É, inevitavelmente, um dos elementos que caracterizam esta década, a atual.

 

Eu sou uma pessoa nostálgica, chegando a beirar, por vezes, o saudosismo. Já fui criticado por isso. Sofro do severo complexo das gerações anteriores de achar muito do que se produz atualmente um lixo feito por pessoas imbecis, além de desprezar todo e qualquer tipo de moda, de trend, seguida pelos antenados e jovens entusiastas. Por outro lado, coedito uma revista de cultura e arte que me mostra mês após mês as maravilhas do que se produz atualmente, as novas possibilidades, o espanto do novo. Através dessa revista eu conheci pessoas incríveis. Criei novos ídolos. Fui influenciado por trabalhos concebidos recentemente. Não é espantoso? Muito bem, isso é aprendizado. Temos que ceder: cada um, um pouco.

 

Nostalgia é a negação. Negação de um presente doloroso. O nome dessa negação é o pensamento da Era de Ouro – a noção errônea de que um período diferente é melhor do que o que se vive – é uma falha na imaginação romântica dessas pessoas que acham difícil lidar com o presente.

(Woody Allen – Midnight in Paris, 2011)

 

 

Mas mesmo assim, tal como em grande parte da minha geração, nascida no final dos anos 1980, uma semente da nostalgia havia sido plantada na minha cabeça. Temos um certo apego audiovisual a coisas que remetem àqueles anos. Tudo, tecnologicamente falando, era tosco, mas nas nossas atuais mentes nubladas recordamos como sendo a experiência sublime. Ledo engano. Eu poderia fazer uma lista imensa de coisas que melhoraram e com as quais apenas sonhávamos naqueles tempos, mas isso me desviaria da questão central da coluna.

 

A semente da nostalgia brotou com o passar de alguns anos e suas raízes adentraram o terreno da era digital. Conseguimos ter alcance àquelas coisas do passado, e, de certo modo, conseguimos revivê-las ou revisitá-las[1]. A nostalgia desse passado passou a fazer parte do nosso presente (talvez pela primeira vez na história). Se parar pra pensar seriamente nisso, é uma coisa louca. Gerações anteriores têm a infância e a juventude seladas num passado mais distante. Nós registramos cada arroto. Como será a relação futura que teremos com esse acúmulo de memórias registradas? Nesse momento eu não consigo afastar da cabeça as palavras de Wim Wenders ao registrar o Japão de Yasujirō Ozu em Tokyo-Ga (1985):

 

 

Tóquio era como um sonho, e hoje minhas próprias imagens aparecem para mim como se tivessem sido inventadas. Como quando, depois de um longo tempo, você acha um pedaço de papel onde escreveu um sonho na primeira luz da manhã e lê aquilo com grande espanto, sem reconhecer nada, como se fosse o sonho de outra pessoa.

 

 

É assustador como Chris Marker, em Sans Soleil (1983), chega a uma conclusão muito semelhante. É também assustador que Marker tenha sido encontrado por Wenders em Tóquio enquanto trabalhavam em paralelo nesses documentários. Pensavam em paralelo.

 

Meditando no fim do mundo, na minha Ilha de Sal, junto com meus cães faceiros, me lembro daquele mês de janeiro em Tóquio. Ou melhor, me lembro das imagens que filmei daquele mês de janeiro em Tóquio. Elas substituíram e tomaram o lugar da minha memória. Elas são a minha memória. Apenas imagino como devem se lembrar das coisas as pessoas que não filmam, não fotografam, não gravam. Como foi que a humanidade conseguiu se lembrar? Eu sei: ela escreveu a Bíblia. A nova Bíblia será uma eterna fita magnética de um tempo que terá que reler a si mesmo constantemente apenas para saber que existiu.

 

 

Nesse momento eu gostaria de ter a minha cópia do Império do Efêmero (de Gilles Lipovetsky, 1987) em mãos.

 

Pois bem. Com a planta da nostalgia crescendo de maneira mais ou menos desgovernada século XXI adentro, com as pessoas todas, assim como eu, alimentando as memórias mais doces em torno dos Goonies (1985), do Super Nintendo, dos óculos Ray-Ban Clubmaster usados por Matthew Broderick em Curtindo a Vida Adoidado (1986), entra em cena o ator principal de nossas vidas e do palco maior do nosso mundo. O definidor e o definitivo. O Alfa e o Ômega.

O Mercado.

 

E assim, o Mercado, com sua grande cara suada, babaca e inchada (tipo assim), enxerga no sentimentalismo nostálgico o grande nicho comercial e pop-cultural em que nos vemos afundados até o pescoço hoje. Estamos proibidos de deixar a nossa infância para trás. Estamos proibidos de rememorar a infância, já que as memórias, tal como disse Marker logo acima, foram substituídas por imagens, brinquedos, seriados, uma impressão geral, coletiva, do grande Ruído que eram os anos 1980, transformados agora em ridículas caricaturas de neon.

 

É engraçado observar que a maioria das minhas citações até aqui veio dos anos 1980, geradas por grandes mentes que, de certo modo, já enxergavam o germe do que vivemos agora. Além disso, talvez os anos 80 tenham sido uma das décadas mais obcecadas com o Futuro. Tudo lá era futurista, tudo era cyberpunk-cibernético-synthwave-tech-fashion-termos-em-inglês-androides-e-videogame. Logo chegariam os anos 2000, e isso sim seria o Futuro! Quantos filmes e quantos jogos não se passaram em 2000 e poucos? De volta para o Futuro? Megaman? Eteceteras. E quanta ironia ao ver que a nostalgia intrínseca dos anos 1980 estava fixada principalmente nos anos 1950. Façam as contas e vejam essa simetria.

 

But I digress (frase preferida em inglês).

 

O Homem deve possuir um apetite infinito pela vida. Deve ser auto evidente para ele, o tempo todo, que a vida é esplêndida, gloriosa, incessantemente rica, infinitamente desejável. No presente, já que está numa posição intermediária entre o bruto e o verdadeiro humano, ele sempre está entediado, deprimido, cansado da vida. Tornou-se tão saturado com a civilização que não consegue contatar as fontes da pura vitalidade. O controle do córtex pré-frontal mudará tudo isso. Ele cessará de lançar olhares nostálgicos para o útero, pois se dará conta de que não há como escapar da morte. O Homem é uma criatura da vida e da luz do dia; o seu destino está na objetividade total.

(Colin Wilson, The Philosopher’s Stone, p. 317-318, 1969)

 

 

A produção cultural recente foi impactada fortemente pela obsessão nostálgica da cultura-pop. Nessa mesma edição da R.Nott eu falo na coluna de Visuais, ao comentar a Bienal de Arte Digital, sobre uma bizarrice chamada vaporwave (clique aqui). Ou seja, uma produção baseada exclusivamente na nostalgia (inclusive do que não se viveu. Veja mais no link incluído na primeira nota de rodapé). Grupos musicais do estilo synthwave e seus trilhões de subgêneros, grupos como Mega Drive e Perturbator, baseiam a sua produção unicamente na nostalgia, reproduzindo à exaustão sons e atmosferas oitentistas. Acaba sendo até difícil comentar sobre filmes e séries. Fico apenas no atormentadamente aclamado Stranger Things, um Goonies para a geração dos 30 e poucos de hoje.

 

Videogames como Shovel Knight (2014) utilizam gráficos de quase trinta anos atrás para saciar o gosto dos nostálgicos. Aliás, qual não foi a minha surpresa ao ver os lançamentos de Megaman 9 e 10 (2008 e 2010) utilizando a mesma jogabilidade e os mesmos gráficos da HEXALOGIA lançada para o console NES entre 1987 e 1993? Vem cá, mesmo que os jogos sejam bons, não há mais o que fazer?

 

(E se te dissessem lá em 1993 que no ano de dois mil e cacetada existiria um console caseiro monstruoso incrivelmente-inimaginável chamado PS4 e as pessoas o usariam pra jogar NES? – para as pessoas alheias ao mundo dos games, minhas sinceras desculpas.)

Sim, o problema está na indústria e no maldito fanservice. O retrô, o vintage e o nostálgico viraram desculpas para enfiar produtos goela abaixo dos ávidos consumidores, e a indústria, sem a obrigação de experimentar – e se arriscar financeiramente – com o Novo, agarra-se ao lucro garantido do que eles já sabem fazer, vendendo-nos novamente a nossa própria infância.

 

E o meu ponto nisso tudo é esse (e recomendo novamente a leitura da coluna Visuais desta edição para um complemento à discussão): para onde leva uma produção centrada em si mesma? A auto referência, ainda que divertida, tem uma vida muito curta e deixa muita coisa de lado. Deixar-se influenciar por outras épocas é diferente do trabalho necromântico de tentar reviver uma década (dura lição que aprendi entre 2004 e 2007, quando descobri que não poderia ser o novo David Coverdale e que o Hard Rock/Hair Metal estava morto e bem enterrado).

 

Grandes movimentos artísticos e grandes vanguardas viram o novo como uma superação infalível do velho, em movimentos que beiravam o ódio aos anteriores. A coragem, a audácia, a rebelião serão elementos essenciais de nossa poesia (Marinetti, 1909). O resultado nem sempre era exatamente melhor, em termos de superação qualquer que fosse, mas uma transformação sempre se gera a partir dessa postura. É o Ruído infalível e incessante da máquina que se reinventa. Um Michelangelo Merisi da Caravaggio que se propõe a superar um Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni.

 

Mas onde nós estamos?

 

Estamos comprando tickets para Star Wars episódio perdi-as-contas, num loop, num repeat. Mais do que isso. Estamos, de certo modo, bastante oprimidos pelo passado, sendo talvez a primeira geração (justo a que tem em mãos todas as ferramentas do mundo!) com medo dos velhos e dos seus museus. O passado é grande demais para superá-lo.

 

Oras pois!

 

Termino o texto assim mesmo, sem uma ideia conclusiva e brilhante.

 

Meu brilho de otimismo vem na forma de um jogo. Cuphead é um título independente, idealizado e dirigido pelos irmãos Chad e Jared Moldenhauer, desenvolvido e publicado pelo StudioMDHR e lançado em 2017. Sua realização não seria possível em consoles de gerações anteriores. Com efeito, Cuphead reúne a coragem de um estúdio independente à tecnologia de ponta dos consoles atuais. Aclamado ao redor do mundo como uma obra prima do videogame contemporâneo, como um dos maiores títulos da história dentro do estilo run-and-gun, e nominado a uma porrada de prêmios, Cuphead está profundamente baseado em referências aos anos 1930 (chegamos a mencionar a nostalgia por épocas que não vivemos?), fazendo uso da animação conhecida como Rubber Hose, estilo subversivo e surrealista que define a animação norte-americana dessa década, e um mais-do-que apropriado Jazz na trilha sonora, composto exclusivamente para o jogo. Os desenhos e a animação foram feitos manualmente, assim como os cenários, coloridos com aquarela[2]. E chama a atenção o fato da jogabilidade estar completamente baseada nos títulos da virada dos anos 1980 para 1990, unindo a sensação nostálgica de controle e os altos níveis de dificuldade a um visual estrondosamente original dentro da história dos games. Em resumo, você está jogando um jogo tal como os bons jogos dos anos 1980 enquanto assiste a uma paulada de uma belíssima animação artesanal, de altíssima qualidade, baseada nos anos 1930.

 

Isso, meus caros, não é tentar pintar de novo a Mona Lisa. Isso é unir referências para criar o Novo e apontar um caminho fresco para o Futuro.

 

Isso é fazer um bom uso da Nostalgia.
https://www.youtube.com/watch?v=4TjUPXAn2Rg

 

Onde estou quando não estou na realidade ou na minha imaginação? Aqui está o meu novo pacto com o mundo: deve ser ensolarado à noite e deve nevar em agosto. Grandes coisas acabam, pequenas coisas duram. A sociedade deve tornar-se unida novamente ao invés de tão desarticulada. Apenas olhe para a natureza e verá que a vida é simples. Devemos voltar para onde estávamos no ponto em que se tomou a curva errada. Devemos voltar às principais fundações da vida sem sujar a água. Que tipo de mundo é esse, se um demente diz que vocês devem envergonhar-se de si mesmos? Música agora!

 (Andrei Tarkovsky – Nostalghia, 1983)

 

P.s.: por mais irônico que pareça, esta coluna retoma uma discussão desenvolvida por Juliano Samways na primeira edição da R.Nott, no texto para Ruído intitulado “Eterno retrô do mesmo”. Para aprofundar essa reflexão, ou para apenas rir do meu remake deste mês, acesse o link clicando aqui. De qualquer modo, como já alertava Nietzsche, é apenas a lei do eterno retorno acontecendo (de novo).

 


[1] Para uma excelente reflexão pontual sobre o assunto, veja Past futures: Nostalgia in the age of escapism, disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=cUz1BFVRExs (legendas apenas em inglês, infelizmente).

[2] Vale muito a pena conferir o making-of de Cuphead aqui: https://www.youtube.com/watch?v=ujkFlNkXMu4

Vinicius F. Barth
Doutor em Estudos Literários pela UFPR. Tradutor das Argonáuticas de Apolônio de Rodes. Escritor e ilustrador. Autor do livro de contos 'Razões do agir de um bicho humano', (Confraria do Vento, 2015) e do livro de poemas e ilustrações '92 Receitas Para o Mesmo Molho Vinagrete' (Contravento Editorial, 2019). Ilustrador de Pripyat (Contravento Editorial, 2019). Estudante de saxofone.

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