InterrogatórioPor aí

Interrogando Thiago Mattos

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“Mas aí começamos a falar também sobre a utilidade da poesia, isto é, para que diabos ela serve? E aí sim talvez seja uma discussão interessante: para que ler e escrever poesia neste mundo?”

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  • Como, onde, quando e por quê?

 

Fico tentado a dizer que a escrita está em mim (ou, melhor dizendo, eu estou na escrita) desde tempos tão remotos que não saberia precisar nem quando nem como, sendo um tipo de convivência que é também uma sobrevivência. Mas o fato é que, tentando recusar mistificações da escrita e daquele que escreve, diria que comecei a construir uma relação, digamos, “criativa” com a linguagem lá pelos 10 anos, escrevendo jornais para circular em casa, livrinhos ilustrados para vender para parentes, historietas que emulavam, para não dizer copiavam, os livros que lia. Minha irmã, quatro anos mais velha e interessada pela leitura, de certa forma foi “abrindo” o caminho, deixando uns livros espalhados pela casa que eu ia me obrigando a ler, como se essas leituras de algum modo me pudessem me levar para outro “lugar”, num sentido metafísico, anímico, existencial, vai saber. Não posso dizer que tenha realmente chegado a qualquer lugar muito diferente daquele de todo ser vivente (isto é, a ignorância cabal e total sobre si e sobre tudo), mas posso dizer que pouco a pouco fui tomando certa consciência da potência tanto da palavra (ia dizer “linguagem”) quanto da criação propriamente dita. Lá pelos treze anos, um dos livros que apareceram no meio do caminho foi o livro didático de literatura brasileira que minha irmã usava na escola (ela devia estar começando o ensino médio,). Passei a folhear sem ordem nenhuma, como uma antologia, não como um livro didático, e, pensando em termos de “tomar consciência” de alguma coisa, fui cortado por um raio e nunca mais parei de me meter, em leitura e em criação, com essa coisa indefinida (e tão questionável) que chamamos de “literatura”.

 

 

  • Existe, para você, um grande tema para a poesia?

 

Sou muito desconfiado em relação a “grandes temas”, “grandes livros”, “grandes autores”. Posso falar com alguma certeza que um livro é grande, mas um “grande livro” será sempre para mim um tipo de afirmação meio inútil. A poesia não tem grandes temas porque a poesia não tem tema nenhum, ou tem todos os temas, como preferir. Em termos retóricos, seria aconselhável dizer que o “grande tema” da poesia é a existência – ou, para conseguir equilibrar uma certa tradição com uma certa modernidade e uma certa contemporaneidade, poderia dizer que o “grande tema” da poesia é a própria poesia, estando aí também a sua relação com a vida e a existência, que talvez só existam porque são ditas, poeticamente ou não. Poeticamente seria melhor, mas enfim. Mas aí começamos a falar também sobre a utilidade da poesia, isto é, para que diabos ela serve? E aí sim talvez seja uma discussão interessante: para que ler e escrever poesia neste mundo?   

 

 

  • As temáticas da casa e da família são bastante exploradas em Casa Devastada. Por que esse tema te pareceu importante a ponto de render um livro? Sua poesia é autobiográfica? Se sim, até que ponto?

 

Na verdade essas temáticas apenas “vieram”, não foi nada elaborado de antemão. Claro que, conforme você vai escrevendo, começa a tomar consciência de certas forças temáticas que vão aparecendo aqui e ali, tensões que, a partir daí, vão puxando e repuxando as palavras. Não sei de onde vem nada disso, mas acredito que, independentemente disso, já superamos a falsa dicotomia entre “toda escrita é autobiográfica” e “toda escrita é ficção”. Escrever é autobiografia e ficção ao mesmo tempo, porque é, no fim das contas, linguagem, dizer o mundo e dizer a si mesmo, criar um eu e um mundo para existir esse eu. Não existe nem eu nem mundo fora da linguagem, e, se existe, não somos capazes, como sujeitos criadores de linguagem e criados pela linguagem, de alcançá-lo, apreendê-lo de algum modo que não por linguagem. A literatura é um modo (não o único) de escancarar isso.

 

  • Entre Teu pai com uma pistola (2012) e Casa Devastada (2014) existe uma continuidade? Fale um pouco sobre o processo de composição dos seus livros.

 

Olhando para os dois livros, consigo ver um tipo de continuidade que não foi proposital: a organização dos poemas. No Teu pai com uma pistola estão organizados dentro de uma certa “linearidade”, um “crescendo” narrativo que é reforçado pelos títulos de cada poema: o primeiro se chama 0,0 e o último, 4,9, havendo aí dentro uma série de sequências, dobras e cascatas que indicam um percurso narrativo que se forma desse conjunto. Em Casa devastada, esse tipo de arrumação ganha uma importância maior: o próprio livro pode ser lido como um romance em versos, com personagens, espaços etc. que vão desenhando uma narrativa relativamente estável conforme esses poemas são lidos um em relação ao outro. Só percebi essa continuidade, que talvez nem seja tão contínua assim, quando o livro estava publicado e tinha que inventar alguma coisa para falar no lançamento, dar alguma explicação, ou melhor, dar alguma satisfação. E isso foi o que me veio de imediato à cabeça: essas narrativas que atravessam, inclusive no sentido propriamente textual, esses dois livros e não só organizam como de certa maneira condicionam a leitura dos poemas enquanto conjunto narrativo.

 

 

  • O que você, autor jovem de livros recentes, acha (e espera) do cenário poético brasileiro do século XXI?

 

Não acho que tenhamos um problema de “produção”. Ou melhor: não acho que seja possível emitir um valor geral sobre a produção contemporânea que não seja temerário e apressado. Toda época produz seus “grandes poetas” e suas “grandes referências passadas”, mudam-se os tempos, mudam-se os “grandes poemas”, assim vai caminhando o cânone e os “julgamentos de valor” sobre a produção passada e presente. O problema não é a “qualidade” das produções poéticas de uma época (inclusive a contemporânea), que vamos construindo e desconstruindo de acordo com nossas próprias inscrições poéticas, ideológicas, críticas etc. O problema dos cenários poéticos brasileiros (acho importante o plural aí) é na verdade sua recepção: quem lê o que se produz nas poesias contemporâneas brasileiras? Nunca tivemos a sensação de haver tantos poetas e tantas publicações (não vou cair em afirmações generalizantes), mas não é esse o impasse. A questão é: quem lê poesia? (É uma pergunta que tem muitas dimensões, inclusive uma dimensão social, política etc. evidentemente relevante.) Em termos imediatos: quem lê poesia contemporânea? Os parentes mais próximos dos poetas (estou sendo otimista, é possível que nem os mais próximos), os pesquisadores de poesia brasileira contemporânea (que, além de pouco numerosos, nem sempre estão dispostos a ler “novíssimos” poetas brasileiros, preferindo, o que é muito compreensível, nomes minimamente sedimentados nesse cenário) e os próprios poetas (novamente estou sendo otimista). Em termos de recepção fora do Brasil, via tradução, a situação, pelas mais diversas razões que não vêm ao caso nem ao acaso, é ainda mais estreita. O curioso é que não é uma situação específica do Brasil. Há certo tempo, li o Mário Laranjeira (tradutor dos mais respeitados de poesia francesa no Brasil) dizendo que muitos colegas franceses pediam para que ele indicasse nomes da poesia francesa contemporânea, porque, no fim das contas, parece que ninguém lia ou lê poesia contemporânea em lugar nenhum. Não posso generalizar esse pensamento para todos os cenários poéticos do mundo, nem sequer do ocidente, mas arrisco dizer que a recepção estreita de poesias contemporâneas é um problema fortemente presente em muitos cenários poéticos do mundo afora, e especialmente no Brasil. Uma comparação rápida: em Portugal, com uma população de menos de 11 milhões, uma tiragem de poesia contemporânea portuguesa gira em torno de 500 exemplares; no Brasil, com mais de 200 milhões de habitantes, publicamos poesia brasileira contemporânea com os mesmos 500 exemplares. As exceções, como sempre, confirmam a regra. Claro que, nessa comparação, vamos parar em questões históricas, políticas, sociais etc. O que quero dizer é que há algo não resolvido (mas nada afinal se resolve nesta vida) em relação à posição ocupada pelas poesias contemporâneas na própria contemporaneidade.

 

 

  • Como a cidade de São Paulo afeta/transforma/resignifica o que você escreve? O que é a poesia escrita na metrópole?

 

Vim para São Paulo há pouco tempo (dois anos), apesar de frequentar a cidade regularmente há quase sete. Instalado definitivamente nos últimos dois anos, acabei me envolvendo com mestrado e doutorado, e não sei se o que escrevi até então me permite dizer como a cidade afetou a escrita. Além disso, a minha relação com a cidade natal (Petrópolis) como lugar de escrita é muito forte: é lá que consigo me trancar no mato longe de cimento e gente, entre montanhas indiferentes a mim, à minha escrita, a todo mundo.

 

 

  • Maiores influências, heróis?

 

Tudo que eu leio me influencia de alguma maneira, nem que seja pela via da negação. Poderia mencionar os criadores que leio/vejo/ouço com mais frequência, porque seriam provavelmente os que mais me influenciaram e influenciam, mas acredito piamente que aqueles que li e me foram indiferentes, ou que acho que li sem nunca ter lido, ou que li e detestei (a prudência me aconselha a não citar nomes) são tão importantes quanto nessa diabólica de influências e desinfluências.

 

 

  • Em que você está trabalhando agora? Quais são os projetos futuros?

 

Acho que era o Faulkner que dizia que não devemos falar sobre os livros que estamos escrevendo, sob o risco de não os terminarmos nunca. Sempre que relembro essa frase sinto que é muito coerente com a realidade, ou com o que invento da realidade. Fora que tenho dificuldade para falar sobre aquilo que está ainda em processo, porque enquanto escrevo gosto de não pensar sobre aquilo, não significar tanto aquilo, e sim ir tentando escrever aquilo, não falar diretamente sobre algo que é ainda uma escrita em processo. Aliás, coisas em processo tenho aos montes, envelopes cheios de notas, esboços de parágrafo, grupos de poemas que talvez possam dar um livro, imagens, frases recorrentes, essas coisas. Concretamente, tenho um livro curto, já definitivamente terminado, considerando que não pretendo relê-lo tão cedo, que gostaria de publicar entre este ano e o ano que vem. Não vejo muito sentido nessas separações poesia-prosa, poesia-romance, mas devo dizer, em termos práticos e imediatos, que é um tipo de novela.

 

 

  • Existe algo que você sempre quis responder e nunca te perguntaram?

 

De que maneira o estudo acadêmico e institucionalizado da literatura afeta/transforma/resignifica o que escrevo. E tenho desconfiança de todas as possibilidades de resposta para isso.

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{Hall}

Entra, Magda, e olha por

onde anda, que o chão está

cheio de ossos

A festa está começando,

Magda,

e você já está entediada

Não repara no teto, que sofre de esquizofrenia

Nem no banheiro, que tem Alzheimer

e já não lembra

o que fizeram

nele

Não tem ninguém

Mas não estamos sozinhos

 

Aquele que pica pão na pia

veio só por você

Trouxe vinho e dividiu as compras

Ele se chama Thiago

Acho que se conhecem, Magda,

tenho certeza que se conhecem,

mesmo que você não reconheça

Aquela que chora enquanto rega

uma planta

não sabe meu nome

nem eu o dela

mas me perguntou no corredor

do açougue se eu podia ajudá-la

eu disse que sim

ela chora desde então

e inunda meus vasos de planta

 

Já é tarde, Magda

mas é sempre tarde

Usei os vinis como ralos de chuveiro

ou bandejas em que

vou servindo meu corpo retalhado aos

convidados que nunca convidei

 

Prova um pouco

Você sempre foi boa nisso

Eu sempre fui bom nisso

É por isso que estamos aqui

como navios que naufragam

Vi num documentário enquanto

você não chegava:

os navios não naufragam com pompa

ou rapidez, formando redemoinhos,

engolindo baleias

Naufragam devagar

Ficam horas

talvez dias

inclinados

caindo pouco a pouco caindo

sumindo como um sol

que se põe e é noite

sem nem que notemos

 

Me dá tua bolsa, Magda

Vou guardar no quarto

em cima da cama

Você conhece o quarto

você só não conhece quem dorme no quarto

Lembra de pegar a bolsa

quando for embora

Até lá

senta na única cadeira da casa

aquela encostada à parede

e

cuidado com a parede

que se recusa a emudecer

Acha que é memória

ou cisma que é esquecimento

mas na maior parte das vezes

se diverte segurando teu retrato, Magda

como um revólver

apontado contra meu coração

 

 

 

In:

Casa devastada

{as veias da casa}

Se acumulo esses passos debaixo dos pés,

é que não tenho pra onde ir

Nem tudo sobre o que se anda é caminho

 

Muito do que guardo no bolso é pó,

pedaços de intestino delgado,

tufos de cabelo

 

Mas hoje o dia levanta

de novo o dia

agora menos quente

Magda passa manteiga em um pão enorme na cozinha

quase ouço o estômago abrindo,

um suco verde surgindo

o rosa do estômago colorindo,

Magda, oh Magda

aquela vez em que te internei por causa da tua úlcera

            você nunca esquece nunca perdoa nunca entendeu

De novo o dia

agora menos quente

Não sei o que esperamos

Se pudéssemos ficar debaixo da árvore

nus e tingidos de sombra de folhagem

Mas não, Magda

            Você desce carregando uma estranha caixa de facas,

            martelos,

            barbantes,

            chaves de fenda,

            pregos

            e me implora que eu ajude:

            é preciso que se conserte Pedro

            é preciso que se construa Thiago

            é preciso que se imploda Nelson

            é preciso que se perdoe Magda

 

Magda, oh Magda

mas quando vemos

construímos uma cruz

uma torta cruz de madeira

em que você me prega e me pendura

ajoelhando-se aos meus pés

chorando

comendo terra

enquanto faço sombra no jardim e

os vizinhos leem o jornal de domingo

 

 

 

In:

Casa devastada

[Entra]

Isto aqui com isso aí daria o nosso filho

Disto aqui com isso aí nasceria o nosso filho

Mas não podemos ter filhos

Nosso filho é nossa voz chocada contra o carro

Nosso filho é nossa carne atropelada

Nosso filho é nossa mão dando de comer à lua

Nosso filho é nosso mar inundando Nova York

Nosso filho terá nome de taturanas

e olhos de dia morrendo

Dor de aurora sangrando e

sentimento de pedra florindo

 

Nosso filho é a fila para comprar pão em tempo de guerra

 

 

 

In:

A parede e o sangue dela (inédito)

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Vinicius F. Barth
Doutor em Estudos Literários pela UFPR. Tradutor das Argonáuticas de Apolônio de Rodes. Escritor e ilustrador. Autor do livro de contos 'Razões do agir de um bicho humano', (Confraria do Vento, 2015) e do livro de poemas e ilustrações '92 Receitas Para o Mesmo Molho Vinagrete' (Contravento Editorial, 2019). Ilustrador de Pripyat (Contravento Editorial, 2019). Estudante de saxofone.

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