Literatura

Erotica Theognidea, Breve Antologia

Imagem: Cena de banquete: um homem se reclina sobre um banco enquanto um jovem toca o aulo. Taça ática de figuras vermelhas pintada por Euaion (c. 460-450 a.C.)

 

A poesia erótica e moral de Teógnis, poeta arcaico grego do século VI a.C., apresentada pelo mais-que-ilustre estreante nesta coluna: Rafael Brunhara. Separe a sua garrafa de vinho e boa leitura!


 

“Tudo indica que, quando a Teognideia chegou ao período bizantino, interessara aos copistas preservar apenas os poemas admonitórios, e não os poemas eróticos, que uma enciclopédia da época entendia como ‘perversidades, amores pederastas e tudo o mais que a vida virtuosa rejeita.’”

 

Sob o nome de Teógnis, poeta que teria atuado no século VI a.C. em Mégara, temos uma coleção de aproximadamente 1.400 versos, preservada em cerca de cinquenta manuscritos em bom estado. É um caso único entre os poetas de seu tempo, de quem só nos restaram relíquias maltratadas pelo tempo na forma de fragmentos, coletados em autores posteriores ou em papiros encontrados no Egito.

Para o historiador de literatura, ter tantos versos atribuídos a Teógnis pode parecer animador: estaríamos diante de um poeta arcaico cuja obra sobreviveu intacta, e com ele, portanto, temos a melhor evidência se quisermos perscrutar o fazer literário e o caráter da sociedade grega do período arcaico. Infelizmente a situação não é tão simples: parece bem claro que os poemas que compõem esta coleção – vamos chama-la Teognideia a partir de agora – não são obra de um único poeta, mas uma antologia construída em torno da figura de certo Teógnis, um nome que supostamente incorporava as tradições poéticas da cidade de Mégara.  A única coisa que, talvez, possamos afirmar com certeza é que os poemas da Teognideia parecem ter sido compostos para serem cantados em banquetes, ao som do aulo (uma espécie de flauta dupla; ver imagem acima) e acompanhados pelo vinho.

Talvez, com Teógnis, estejamos diante de uma das maiores ironias dos estudos de poesia grega antiga. Não conseguimos distinguir minimamente quais versos pertenceram a ele, justo ele, o poeta que mais se mostrou preocupado com a autenticidade de sua poesia!  Um poema cujo Eu Poético nomeia-se “Teógnis, o Megarense” fala que a contrafação de seus versos resultaria inútil, uma vez que qualquer um seria capaz de reconhecer o “selo” ali colocado, uma possível referência à qualidade superior do original sobre os imitadores e recriadores de sua poesia:

 

Cirno, como sou engenhoso, seja aposto um selo
nestes versos; nunca vão ignorar se os roubarem,
nem vão mudá-los para algo vil, são um bem à mão.
Assim todos dirão: “são os versos de Teógnis,
o megarense: por toda a terra lhe dão esse nome.”

 

Apesar dessa afirmação poderosa de sua individualidade, não sabemos o que seria o “selo” do poeta e temos pouquíssimas informações a respeito dele além de seu próprio nome e cidade, que ele mesmo nos revela. Uma pista poderia estar no nome “Cirno”, interlocutor de muitos poemas teognídeos. Para alguns estudiosos, Cirno é a marca de autenticidade dos versos de Teógnis: onde está Cirno, está Teógnis.  Segundo fontes antigas, Cirno seria o namorado do poeta, um personagem que atesta um componente da educação aristocrática arcaica. Em uma sociedade em que os mundos masculino e feminino estavam, na maior parte das vezes, cindidos e as relações sexuais com mulheres eram muitas vezes encaradas como um meio de procriação ou apenas satisfação física, era comum que a iniciação sexual de um jovem fosse feita por um homem mais velho, pertencente aos mesmos círculos aristocráticos que ele. Esse aristocrata assumia o papel de erastês (“amador”) e o jovem, o papel do erómenos (“amado”; é a palavra que traduzi, um pouco anacronicamente, para efeitos de clareza, por “namorado”). Esse mesmo aristocrata se incumbia da educação do menino nos códigos morais e que norteavam a aristocracia grega.

 

A Teognideia apresenta essa dupla feição: tanto poemas que apresentam os códigos que sustentavam uma aristocracia grega arcaica, em forma de exortações políticas e morais, como poemas que são flertes homoeróticos, declarações de amor, lamentos ressentidos por amores não-correspondidos e até mesmo algumas ameaças…

 

Tudo indica que, quando a Teognideia chegou ao período bizantino, interessara aos copistas preservar apenas os poemas admonitórios, e não os poemas eróticos, que uma enciclopédia da época entendia como “perversidades, amores pederastas e tudo o mais que a vida virtuosa rejeita. ” Apenas um dos cinquenta manuscritos sobreviventes conservou os poemas eróticos da Teognideia, reunindo-os como um segundo livro, apêndice da coleção de poemas éticos e morais.  Esta breve antologia visa privilegiar alguns destes poemas.

 

Observo, antes de passarmos aos poemas, que excertos da Teognideia já foram traduzidos por estudiosos e poetas brasileiros, e há pelo menos uma tradução integral de sua obra. Um livro da professora Glória Braga Onelley (UFF), A Ideologia Aristocrática na Theognidea (Editora da UFF, 2009), traz como apêndice ao seu estudo uma tradução em prosa de todos os poemas; o poeta Péricles Eugênio da Silva Ramos incluíra versos do Megarense em sua antologia de Poesia Grega e Latina (Cultrix: 1964) bem como Daisi Malhadas (UNESP) e Maria Helena da Moura Neves (UNESP), em sua Antologia de Poetas Gregos, de Homero a Píndaro (Editora da Unesp, 1974).

 

Apresento abaixo uma tradução, em versos livres, de alguns poemas da Teognideia, sobretudo do Livro II, acrescida de comentários.  Estes poemas integrarão futura Antologia da Elegia Grega Arcaica, que atualmente preparo em conjunto com a Profa. Giuliana Ragusa (USP) e que deve ser publicada em 2018.

 

Nas Asas da Poesia (Teognideia, versos 237-254)

 

Teógnis, o poeta, é um mestre da imortalidade. Quem é celebrado em seus versos recebe a maior dádiva, transpor as limitações do tempo e do espaço, fazendo com que o nome percorra toda a terra grega e seja cantado em banquetes de todos os tempos. É a única maneira de vencer a lei da morte: pela poesia.  É esse presente que Teógnis oferece de bom grado ao seu amado Cirno, mostrando uma devoção quase religiosa a ele e se garantindo como poeta engenhoso e capaz. Mas o que Cirno lhe oferece em troca?

 

Eu te dei asas, com as quais sobre o infindo mar

voarás e por toda a terra elevando-te

facilmente: em todos os banquetes e festins estarás

presente, reclinado nos lábios de muitos,                                                     240

e com aulos, flautins claríssonos, jovens homens

atraentes bela e claramente em ordem

te cantarão. E quando um dia às profundezas da terra sombria

à mansão multilácrime de Hades desceres,

nunca, nem morto, perderás a glória: serás o cuidado                                          245

dos homens, sempre com um nome imperecível,

Cirno, a ir e vir pela terra grega e sobre as ilhas,

cruzando o piscoso mar sem messe,

não montado no dorso de cavalos, mas te levarão

brilhantes dons das Musas de violáceas guirlandas;                         250

e a todos, a quem hoje ou no porvir cuidarem delas, serás

também canção, enquanto houver céu e terra.

Apesar disso, eu não ganho nem um pouco do teu respeito:

como se eu fosse um menino, com palavras me iludes.

 

 

 

O Percurso de Eros (Teognideia, versos 1275-1278)

 

Embora os versos amatórios da Teognideia alternem entre prazer, desilusão e ressentimento, o Eros de Teógnis é caracterizado pela doçura: uma doçura que se manifesta tão poderosamente que é personificada como uma divindade.

 

No tempo certo surge Eros, na hora em que a terra                          1275

virente viceja em flores vernais.

Então Eros abandona Chipre, ilha belíssima,

vai à humanidade e semeia a terra.

 

 

 

Doce e Amargo (Teognideia, versos 1353-1356)

 

Eis que o amor na Teognideia, como em boa parte da poesia ocidental, se apresenta como um palco onde operam ao mesmo tempo, forças contraditórias. Não só doce, nem só amargo, Eros é antes dociamargo. O Eu poético, com seu pendor pedagógico, é lapidar ao definir este paradoxo que também o oprime.

 

Amargo e doce, tenro e áspero, é aos jovens

o amor, Cirno, até que o satisfaça.

Se conseguir satisfazê-lo, faz-se doce; mas se o persegue                            1355

e não o satisfaz, de tudo é o mais penoso.

 

 

Assimetrias de Eros (Teognideia 1311-1318)

 

Se por um lado não podemos usar categoricamente as noções modernas de autoria para a Teognideia, uma vez que estamos diante de uma obra múltipla e descontínua, é inegável, por outro, que a coleção nos apresenta um Eu Poético coeso no que concerne às relações amorosas. Ressentido, sempre pronto para acusar, mas perdidamente apaixonado, o que atormenta o Eu é a suspeita de que seu amado flerta com homens que ele considera piores. Este Eu perfeitamente coeso se explica pela concepção de Amor veiculada pela poesia grega arcaica e clássica, sempre fundada em uma assimetria entre erastês (aquele que ama), geralmente um homem mais velho, e erómenos (aquele que é amado), um menino em pleno viço da juventude. Há apenas aquele que suscita Eros e aquele que o persegue e sofre seus efeitos.

 

Não escapou que me traíste, ó menino (sim, eu te persigo),

com quem agora mesmo aliança e amizade

tu fizeste. Jogaste fora meu amor como se fosse desprezível.

Tu não eras amigo deles no passado,

e de todos eu pensava ter feito de ti o meu companheiro                            1315

mais leal. Pois bem! Tenhas tu outro amigo!

Mas eu, que te fiz bem, estou prostrado. E que ninguém, entre todos

os homens, quando te vir, queira amar meninos!

 

 

 

Uma Profecia Ameaçadora (Teognideia, versos 1327-1334)

 

Condenado a essa assimetria, pouco pode fazer o poeta senão rogar para que no futuro a situação se inverta, que o perseguido, ao envelhecer, se torne perseguidor e seja igualmente rejeitado. Por ora, o poeta nem é velho o bastante para pedir que o menino lhe conceda seus favores, nem o menino é velho o suficiente para dá-los. Ainda imberbe, o menino possui as dádivas efêmeras de Afrodite, a Ciprogênia: sedução e beleza. O menino então, conforme a ameaça do poeta, deve prestar atenção na resposta que dará, para não sofrer uma recusa no futuro.

 

Ó menino, enquanto tiveres queixo imberbe, nunca deixarei

de cortejar-te, inda que morrer seja o meu destino.

Ainda te é belo dar amor, e ainda não me é torpe pedi-lo.

Então suplico pelos meus pais, ó menino,                                        1330

respeita-me […] dá-me teu favor, e se um dia tiveres

a dádiva da Ciprogênia de coroa violácea

e com desejo buscares outro,  que um Deus te conceda

encontrar a mesma resposta que me dás!

Rafael Brunhara
Rafael Brunhara é professor de língua e literatura grega na UFRGS e dedica-se sobretudo ao estudo da poesia grega do período arcaico.

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