Ruído

Elucubrações sobre o naïve como perspectiva estética e musical: Amao Quartet como quatro consciências da mesma pessoa, ou como quatro pessoas em um inconsciente coletivo

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capa: Amadeo de Souza Cardoso – Coty (1917)

[/vc_column_text][vc_column_text]Quem assume o Ruído nesse mês é o Amao Quartet, quarteto de guitarras elétricas formado em Porto Alegre. Reflexões composicionais e a ambiguidade entre o erudito e o pop, o sisuso e o cômico: veja um pouco sobre como funciona o processo de criação do Amao nessa coluna (muito bem) escrita coletivamente.


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texto por Amao Quartet

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“Aí surge nossa identidade como um amálgama – erudito, mas informal; música ‘séria’ mas com elementos humorísticos. O caminho se cria ao caminhar.”

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Esse ensaio trata de reflexões sobre o processo composicional e estético do Amao Quartet. O texto é organizado a partir de comentários dos quatro integrantes, sempre colocados entre aspas, intercalados por uma interlocutora pseudo-imaginária, curiosamente, alguém que deu ao quarteto a dúvida sobre ser uma única consciência de quatro integrantes ou uma única pessoa frente às personalidades. A solução da dúvida depende do modo como o leitor interage com a leitura: ou ele se personifica na entrevistadora, ou soma uma nova consciência.

[/vc_column_text][vc_text_separator title=”♦♦♦”][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]O quarteto foi batizado segundo o nome de uma deusa, como conta a lenda: “Amao foi uma das primeiras criaturas a surgir em nosso mundo. Perdeu um filho na beira de um rio, se vingou da natureza e ensinou os índios Camanaos do Rio Negro a produzir beiju e derivados e então desaparecer por toda a eternidade. Esta é uma lenda tão bela quanto curiosa, afinal, uma entidade ancestral que deveria ter todas as respostas, ensinou os índios a obter derivados de uma raiz para alimentação”.

 

Amao trata-se, segundo uma possível leitura, de uma deusa naïve, que com todo seu poder divino decide dar autonomia aos seus guerreiros, ensinando-os a se alimentar a partir de uma raiz abundante em sua terra – um sinal de empoderamento e liberdade![/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Em tempos atuais e não mitológicos, o empoderamento está também em outros lugares: “A guitarra foi o instrumento do século XX, ela passava, e ainda passa uma sensação de poder aos jovens que a tocam ou até mesmo ‘empunham’ suas air guitars ao som de sua canção preferida.” Visualizemos: há algo mais empoderador do que a atitude ingênua de tocar air guitar?[/vc_column_text][vc_column_text]

Dessa perspectiva se desdobram algumas prerrogativas do Amao Quartet por meio de reflexões sobre a música atual e sobre como o quarteto pode ter uma atitude propositiva frente a seus pares. O uso da guitarra tem uma função crítica nessa reflexão, sem dúvida, mas também celebra outros fatores importantes: “Se há algum aspecto predominante capaz de definir a música atual, desde as inúmeras cenas pop, rock, etc. até a música – que na falta de melhor termo – conhecemos por música de concerto é a diversidade sonora. A diversidade atende aos meios de produção: acústico, elétrico, eletrônico e misto; e se espraia aos âmbitos de pensamentos sobre técnicas composicionais e interpretativas, considerações sobre material musical, forma, e vai até onde a reflexão e prática criativa musical é capaz de atingir. Aspectos que em determinado momento do século XX tentaram ser polarizados em escolas (universalismo X nacionalismo; serialismo X minimalismo; complexidade X simplicidade) foram superados, felizmente, e já não há mais possibilidade de pensamentos maniqueístas: a criação está em todos os lados”.

 

A guitarra é um instrumento de miscigenação quando transmutada como parte das diversidades de meios de produção: instrumentos acústicos tradicionais (as cordas de orquestras, por exemplo) são predominantes na música de concerto, e instrumentos elétricos e eletrônicos (guitarra elétrica ou teclado) na música popular. Partindo desse pressuposto, a razão de ser do Amao Quartet em utilizar guitarra elétrica se desdobra em duas funções: uma de pertencimento e uma de transgressão. O pertencimento se deve ao fato em que os integrantes do Amao têm como sua primeira formação musical e estética o uso da guitarra onde ele é enraizado. A transgressão é por utilizar esses instrumentos de modo pouco familiar – tanto para nós quanto para aqueles a quem a apresentamos.

 

“Geralmente ligada ao rock e heavy metal”, quase sustentando uma posição dicotômica, guitarra é um instrumento de transgressão. Porém, com um olhar mais macroscópico, de certo modo o uso da guitarra percorre diversos gêneros, nos quais é identificada como papel de protagonista. “A guitarra vai além disso e se faz presente em muitos gêneros musicais no Brasil, como em duplas sertanejas, grupos de calipso, e outros tantos mais”. Não podemos mais negar a tradição da guitarrada nordestina – isso é fato!!! E por esses gêneros que o guitarrista constrói seu protagonismo: “O guitarrista carrega consigo a imagem do improvisador habilidoso. Quando você comenta ser guitarrista, parece comentar automaticamente que também improvisa um blues, jazz e/ou rock”.

 

E novamente entra a transgressão, o instrumento transgressor e o protagonismo sustentando pelo intérprete (e a partir daí exigimos uma postura propositiva): “E aí entra o Amao, onde apresenta uma maneira de improvisação, aquela livre – onde os músicos tocam de acordo com o que está ouvindo no momento; o improviso direcionado – onde há uma série de ‘acordos pré estabelecidos entre os integrantes’”. Mas o que há de livre e propositivo ‘nessa tal liberdade’? A resposta é: “ainda que haja um mapa, o caminho a se trilhar é desconhecido e depende da interação entre o quarteto”.

 

Para o Amao Quartet os caminhos de criação musical não se findam, pois acabam convergindo em bifurcações, trifurcações ou quantas ramificações forem surgindo. “Uma vez que não há uma única resposta para indicar como se portar ou um mapa que determine o caminho a trilhar, optamos por uma espécie de postura naïve para nossas intenções composicionais e estéticas. Isso significa que buscamos criar com tudo, explorar diversos meios criativos, se portar com uma ingenuidade de quem não tem pretensão de parar de explorar, aprender e errar.” Concluindo sobre o uso da guitarra: a dupla função de pertencimento está na desconstrução da guitarra como instrumento de rock ao ser incorporada em um ensemble que dialoga diretamente com a música livre e música de concerto, interpretando essa última por meio de um instrumento marginalizado e pouquíssimo familiar aos ouvidos entusiasmados com essa tradição.

 

Do mesmo modo que há uma transgressão pelo uso da guitarra na música de concerto, há também o estranhamento vindo daqueles que são familiarizados com a guitarra como instrumento elétrico da música popular, e além: um estranhamento da música experimental e ‘assim-dita’ livre. Experimentamos além: “Além do âmbito experimental, nós também adicionamos um elemento humorístico às nossas músicas, que acontecem tanto de forma ensaiada quanto de forma improvisada”. “Ocasionalmente apresentamos o grupo de maneira informal em algumas apresentações, e inclusive seguimos um roteiro informal, às vezes convidando pessoas do público para improvisar junto conosco. De certa forma somos um grupo erudito informal”. Aí surge nossa identidade como um amálgama – erudito, mas informal; música ‘séria’ mas com elementos humorísticos. O caminho se cria ao caminhar.

 

Um resultado parcial dessa démarche é o álbum Improcreations. “O álbum resulta de quatro compositores intérpretes trabalhando conjuntamente na construção da sonoridade, com intenções composicionais pessoais construindo uma espécie de imaginário sonoro do Amao Quartet. Nossa ideia de material musical, de forma, dos meios de produção sonora e do próprio processo composicional é atravessada por essa característica e é um exemplo de como nos portamos positivamente e de modo propositivo frente à diversidade musical e estética da produção de música atual”.

 

Como último ponto sobre nossa posição naïve em relação à diversidade musical e à guitarra como instrumento protagonista e empoderador, o uso da tecnologia não se restringe à superação da dicotomia entre instrumentos acústicos, elétricos ou eletrônicos. Outro resultado parcial de nosso percurso artístico foi a (des)Virtua Tour de 2016: “Pensando nisso que conseguimos concretizar esta turnê, onde tivemos a oportunidade de realizar concertos em cidades de São Paulo sem a presença física de todos os integrantes, que enviavam via Whatsapp áudios de suas performances para a interação ao vivo”. (notem: a temporalidade da música – arte temporal por excelência – toma rumos pouco previstos. E vai além do que o embate entre o tempo diferido e tempo real poderia pressupor: A interação ao vivo, à distância, interferindo em um discurso que está sendo criado em tempo real).

 

A discussão apresentada aqui é apenas uma despretensiosa introdução – fantasiosa e onírica – em que o grupo reflete estética e composicionalmente. “E assim segue o Amao Quartet, com uma postura naïve frente a essa gama de possibilidades e ebulição de oportunidades, porque não há uma única resposta indicando o melhor caminho a seguir. Isso significa que buscaremos criar com a diversidade conhecida, exploraremos diversos meios criativos, nos portaremos como quem não tem a pretensão de parar de aprender e errar.” Por isso fica mais clara a relação entre nosso Amao e a Amao apresentada no início desse texto: “Confiamos na ingenuidade como destruidora de preconceitos e no conhecimento como filtro anti-informação-manipuladora, afinal, nesse mundo imerso em informação e propaganda, o essencial para uma boa alimentação não precisa ser um caríssimo prato hiper-especial-técnico-gourmet-marketado… Um simples beiju já consegue resolver o problema com grande eficiência!”.[/vc_column_text][vc_single_image image=”4949″ img_size=”full” alignment=”center”][vc_text_separator title=”♦♦♦”][vc_column_text]Com uma olhadela na atualidade e suas tendências, as neuras e sensações de estar perdido no imenso volume de dados e possibilidades da era da informação acabaram por abrir portas a novos gurus, humanamente tão incapazes de processar essas informações quanto nós e, mesmo assim, repletos de fórmulas para facilitar a vida de quem os escuta, levando a uma problemática muito próxima (embora com novos meios) ao das verdades segregadoras do passado. Essa reflexão presente-futuro, não integra este texto por questões de foco e tampouco se tornará “Elucubrações parte 2: O retorno de Amao”… Preferimos deixar um posfácio, lançando essa pauta e entregando-a em suas mãos, caro leitor!

 

 

Sobre o Amao Quartet:

 

O Amao Quartet foi fundado em meados de 2014, na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. O conjunto trabalha com música improvisada e escrita – para sua instrumentação ou instrumentações abertas. Este quarteto também pretende colaborar para o reconhecimento da guitarra elétrica pela comunidade acadêmica brasileira, além de colaborar para o reconhecimento da improvisação livre e da música contemporânea pela comunidade de guitarristas da cena musical “popular/rock/jazz”, estimulando o público a entrar em contato com uma combinação incomum: guitarras elétricas tocando música contemporânea/experimental, tanto improvisada quanto escrita.

 

Integrantes: Glauber K. de Souza, Daniel S. Mendes, Igor Dornelles e Pedro Paiva.

 

 

 

 

Página no Facebook:

https://www.facebook.com/amaoquartet/[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][/vc_column][/vc_row]

Vinicius F. Barth
Doutor em Estudos Literários pela UFPR. Tradutor das Argonáuticas de Apolônio de Rodes. Escritor e ilustrador. Autor do livro de contos 'Razões do agir de um bicho humano', (Confraria do Vento, 2015) e do livro de poemas e ilustrações '92 Receitas Para o Mesmo Molho Vinagrete' (Contravento Editorial, 2019). Ilustrador de Pripyat (Contravento Editorial, 2019). Estudante de saxofone.

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