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Copie, refaça, reuse. Essa é a maneira de prosseguir.

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Imagem: Salvador Dali – Cópia de um Rubens Copiado de um Leonardo (1979)    

[/vc_column_text][vc_column_text]A cópia como escola dentro da produção artística. Talvez alguns artistas de novas gerações não se deem ao gosto de copiar livremente obras anteriores. Isso pode se dever ao estigma imposto sobre a cópia como plágio ou falta de originalidade. Marlon Anjos mostra que na História da Arte acontece justo o contrário.


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“mesmo que possa ser questionada a identificação realizada até aqui entre cópias e originais, não podemos deixar de enxergar uma linha hereditária que atravessa as épocas e que autoriza artistas a reusar, refazer ou copiar obras dos seus antecessores.”

 

[/vc_column_text][vc_empty_space height=”52px”][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Existem aqueles que afirmam que a cópia é uma obra fácil.

 

Há injustiça nesta afirmação, pois atende ao desejo daqueles que enxergam na cópia um trabalho desqualificado. Sabemos que o artista que copia é mais hábil que o copiado. O artista copiado não fez mais do que dar liberdade a seus instintos. A dificuldade está em se esforçar para produzir o que o outro realizou por acidente. O que em um é natural, no outro é artístico.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Michelangelo (1475-1564), “ser celestial e divino, mais que mortal”, segundo Vasari, desde muito jovem foi aprendiz do pintor renascentista Domenico Ghirlandaio (1449-1494). Como era de costume, recebeu do mestre a tarefa de realizar cópias. Realizou um trabalho que ficou tão perfeito que era impossível identificar o original da cópia. O comprador deu-se por feliz e acreditou possuir o original, quando em realidade possuía a reprodução. Michelangelo guardou para si o original como um precioso tesouro, e entregou a cópia ao comprador. Porém, não foi possível manter o fato em segredo. Michelangelo se gabou ao contar para outros aprendizes sobre o assunto. A inveja cresce na mesma medida que a fama. Torrigiano, motivado pela inveja ao vê-lo mais valorizado, desferiu um golpe contra o seu rosto que quebrou o seu nariz. Um dos alunos de Ghirlandaio delatou-o para o comprador, que foi à escola de pintura para reaver o original. Michelangelo negou o fato, colocando os trabalhos lado a lado, ficando evidente que nada poderia distingui-los.

 

A cópia pode ser comparada a um crime perfeito. Para obter uma boa reprodução é necessário um talento pericial. Só assim consegue ser roubo seguido de assassinato, onde a vítima não precisa ser citada, pois sua alma é incorporada na obra.

 

Nós valorizamos uma coisa esteticamente não para uso, nem sempre para exibir, mas pelo que ela é, ou melhor, pelo que acreditarmos que seja. E a cópia pode ser odiosa porque nega nosso afeto por coisas individuais, balança nossa relação com o presente por apresentar um antigo reflexo, e com isso, reconstrói laços fortes que temos com o passado.

 

 

Há algumas décadas muitos países abandonaram a cópia como um processo de aprendizagem, e a ideia da cópia como elemento artístico e didático ficou cada vez mais distante. Muito desse abandono parte da ideia de que a cópia inibe a vazão criativa. No entanto, por alguma razão, muito da produção artística atual parece ter se convertido em um meio de expressão pessoal com características quase terapêuticas ou meramente decorativas. Isso não é um problema. Se fosse, poderíamos diagnosticar o bombardeio de maneirismos na presente produção cultural como uma relação direta à falta de análise do passado por meio de reproduções, mas proceder dessa maneira prescreveria um atestado equivocado. O mais correto seria afirmar que desprestigiar a cópia ou a reprodução como elementos ausentes de qualidades artísticas ou de potencialidades na aprendizagem de linguagens apenas demonstra a falta de compreensão daquele que apregoe tal veredicto sobre os “loops” na história da arte.

 

Desde a Antiguidade, o ato de copiar foi uma constante, muitas vezes de forma indiscriminada. Acredito que não haja necessidade de apontar casos isolados que evidenciem tal gotejamento entre sociedades antigas que se estabeleceram ao longo do Mar Mediterrâneo. Talvez seja interessante salientar que o intenso trânsito de cópias que atravessou o mar promoveu a manutenção da tradição ao longo dos séculos. Nesse sentido, o ato de copiar não apenas influenciou escolas e movimentos, mas alimentou a criatividade por milênios.

 

A influência das cópias seria sentida em todos os cantos, de tal modo que todos os grandes artistas provavelmente se valeram do ato de copiar. Da arte egípcia a grega, da grega a romana, do ocidente ao oriente. Em algum momento todos serviram como modelo, fronteiras e dissabores foram minimizadas, e copiar uns aos outros apresenta-se como uma comum promiscuidade na história.

 

Aos quatorze anos, Michelangelo dedicou-se a copiar, exaustivamente, a “Ascensão de São João Evangelista”, de Giotto (1226-1337), na capela de Santa Peruzzi da basílica da Santa Cruz, em Florença. Rubens (1577-1640) copiou mais de trinta artistas italianos com frequência, alguns de seus alvos mais conhecidos são: o próprio Michelangelo, Bellini (1430-1516), Mantegna (1431-1506), Da Vinci (1452-1519), Rafael (1483-1520), Correggio (1489-1534), Ticiano (1490-1576), Tintoretto (1519-1594), Veronesse (1528-1588), Caravaggio (1571-1610), entre outros. A lista é longa, e não cabe aqui citá-la por completa. Van Dyck (1599-1641), mestre da guilda da Antuérpia em 1618, pintou à maneira de seu mestre, Rubens. Referia-se a ele como “o melhor de seus discípulos”. Aparentemente Rubens não se sentiu ameaçado por seu aprendiz, e o encorajava comprando algumas de suas obras.

 

Ticiano deve ter chegado a pensar como Giorgione (1478-1510) quando utilizou as mesmas formas que ele na produção de sua obra. “Vênus adormecida” (1510), de Giorgione, serviu como base para a pintura erótica de Ticiano, “Vênus de Urbino” (1538), que mais tarde se “converteria” em “Olympia” (1863), de Manet (1832-1883). Esse tipo de assimilação foi recorrente na história da arte. Neste sentido podemos afirmar que a cópia pode ser compreendida como uma maneira de observar através dos olhos de outrem, e fixar por meio da forma o que o outro visualizou.

 

Poussin (1594-1665), romano por adoção, copiou Ticiano. “Meu projeto é refazer Poussin a partir da natureza”, afirmou Cézanne. Que por sua vez, copiou Caravaggio, Delacroix (1798-1863), Giorgione e Rubens, além de muitos outros.

 

Para citar aquele que foi um dos artistas mais importantes e originais de sua época, que produziu tantos movimentos que podem ser comparados à quantidade de artistas modernistas reconhecidos no Brasil, ao contrário de vários de seus contemporâneos, foi menos ortodoxo ao estilo, não deixando se prender a regras. Aquele que a sua vida artística revela um homem constante, criou o seu próprio universo povoando-o de bestas e mitos, e igualmente o recheou com cópias. Picasso (1881-1973), quando estudante, copiou muitos dos mestres espanhóis, como profissional copiou Lucas Cranach (1472-1553), Delacroix, Hans Holbein (1497-1543), El Greco (1541-1614), Courbet (1819-1877), Manet, Poussin e Velázquez (1599-1660). Vale lembrar que ele, [Picasso], nunca poderia ter pintado a sua obra em 1900 sem recorrer à arte africana.

 

Para mencionarmos alguns artistas brasileiros em nossa singela lista, lembremos que Victor Meireles copiou “A Balsa de Medusa”, de Géricault (1791-1824), ainda quando estudava na Europa. Anitta (1889-1964) copiou Botticelli (1445-1510) como “contraproposta” de sua bolsa para Europa. Alguns pesquisadores apregoam que essa foi uma prática comum entre os jovens artistas que deixavam o país por meio de bolsas de estudos financiadas pelo Estado. O que nos permite afirmar que vários museus do Brasil estão repletos de cópias de diversas obras. Portinari (1903-1962), quando visitou o MOMA, em NY, em 1939, ao ver Guernica, soube o que deveria assimilar para a sua obra. Tratou de emular o cubismo de Picasso, destaca-se esse reuso em duas de suas séries: Bíblias (1942-1944) e os Retirantes (1944-1945). Esse ato lhe renderia o epíteto de Portinasso.

 

Sem mais exemplos, pois a linha sucessiva de cópias é tão extensa quanto a quantidade de pessoas que se intitula artista na contemporaneidade, até poderíamos preencher completamente uma lista telefônica apenas apontando quem copiou quem. Mas isso seria demasiadamente cansativo, e produziria poucos frutos. O que nos interessa atestar é que a imensa quantidade e proliferação permite afirmar que a cópia marca uma linha profunda no tecido da história da arte, mas ocorre em menor intensidade na produção artística contemporânea, de modo que optei em não mencionar neste texto as cópias realizadas na contemporaneidade.

 

No entanto, atualmente alguns preferem se referenciar à cópia por sinônimo mais polidos, tais como: reelaboração, reinvenção, releitura e outros procedimentos que trazem em si um purismo da língua. Também há aqueles que assemelham a cópia a pastiche, falsificação e plágio. O segundo caso é mais preocupante que o primeiro. Contudo, mesmo que possa ser questionada a identificação realizada até aqui entre cópias e originais, não podemos deixar de enxergar uma linha hereditária que atravessa as épocas e que autoriza artistas a reusar, refazer ou copiar obras dos seus antecessores. Até porque o que está em xeque é a capacidade que o artista possui em receber e devolver as influências e referências, e não o uso estrito das palavras na identificação dos atos.

 

Muitos dos produtores de arte ainda copiam, mesmo que de forma indireta, às vezes desconhecendo a fonte, as vezes ocultando o fato de ter copiado por vergonha, por vezes ocultando o ato de copiar por meio de predicados – como os já citados –, outras vezes escondendo a real inspiração na tentativa de tomar para si a originalidade. Porém, temos que ter em mente que a cópia funciona como um modo de conectar e estabelecer referências, e ao criar conectividades gera interessantes canais interpretativos. Mas negá-la revela o medo em ser influenciado, e a ambição em ser original. Daí que percebemos que o problema não está em copiar, mas esconder ter realizado tal ato.

 

Qualquer pessoa que tenha obsessão pela originalidade poderia se ofender se fosse mencionado que parte de sua obra se parece com alguma outra. Raro seria não encontrarmos semelhanças na produção contemporânea com a de outras épocas. Buscar produzir material novo não significa procurar dizer o que ninguém disse, isso é apenas talento em produzir isolamento (e já sabemos: tudo já foi dito). Desconhecer o que foi realizado será apenas uma forma de se iludir. Pensar que é totalmente original, e que não deve nada ao passado ou ao presente, é o verdadeiro equívoco, e demonstra uma estranha esquizofrenia. A originalidade não brota na cabeça de um artista como uma entidade alienígena, amiúde, constitui-se como sutil jogo de variações e transformações. E aceitá-la talvez seja o início da criação.

 

Estudantes expostos a cópias se familiarizam com a aparência do original. Muitos de nós aprendemos mais sobre pinturas vendo slides e ampliações do que vendo as pinturas em si. Essa afirmação certamente deve incomodar aqueles que apregoam que apenas é possível compreender uma obra ao observar o original. No entanto, apenas o espírito livre pode conceber a cópia como uma obra melhor que a original. E isso lá tem a sua verdade, uma cópia pode ser melhor que o original por uma série de fatores. O mercado de arte muitas vezes mostrou isso ao vender reproduções de originais. Cumpre informar que alguns exemplos já foram mencionados na revista em edições anteriores, e por mais de um autor.

 

Uma cópia pode parecer melhor do que o seu original desgastado. Pinturas normalmente mudam tanto com o tempo que, depois de séculos, não se assemelham muito ao seu estado inicial. Podemos então possuir cópias fidedignas em relação à aparência que um original possuía. Igualmente o original, ou partes do original, pode ser substituído por cópias sem produzir danos, desde que seja assinalado como cópia. E isso pode não causar dissabores, mas fornece uma fonte de conteúdo mais barata e também mais democrática.

 

Práticas como essas vêm tomando os museus e instituições. Cada vez mais museus substituem obras por cópias, réplicas ou, o mais incrível de todos, autênticos falsos. As motivações dessas substituições são igualmente plurais, por vezes substitui-se uma obra por uma cópia quando a original foi roubada, ou por estar demasiadamente desgastada, ou simplesmente como prática didática. Ainda que haja quem vá contra esse uso das cópias, não podemos parar o fenômeno.

 

Cópias legais vêm ganhando cada vez mais espaço e interessados em seu comércio, seja devido à necessidade de preservação, numa tentativa de preservar a história antiga com a produção de cópias, ou no desejo de possuir obras inestimáveis que apenas possam ser contempladas por meio da reprodução, onde o consumidor possui a cópia como uma pintura em si. Vender cópias constitui uma atividade que tem aumentado no decorrer das décadas. Negociações legais como Forgery of the Month, em Chicago, e True Fakes Limited, em Nova York, são exemplos disso. Os artistas fazem arte com materiais que precisam e nunca no vácuo. O mercado faz o que quer.

 

 

Por fim, atrás da massiva quantidade de cópias, esconde-se algo mais profundo. As raízes da arte mais radical de hoje permanecem no dadaísmo, movimento que já completou o seu centenário. A edificação da arte contemporânea foi toda construída sobre a ideia de revolução permanente, de coisas novas e desafiadoras. No entanto, parece que tudo já foi dito. E o novo é um velho amigo. Devemos ver que a arte avança, e a arte do século XX agora vive no passado, como uma cultura bizantina que cultua o novo. Por isso, peço votos, sem nenhum maniqueísmo, que o ato de copiar e as cópias possam apresentar, novamente, o seu lado criativo.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

Marlon Anjos
Mestre em artes visuais. Neoísta.

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