Literatura

Literatura, cinema e catarro: uma relação funérea

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“Todos nós já vomitamos aquela frase “mas o livro é muito melhor”. Mas mesmo assim sentimos um tipo de satisfação pouco explicável em ver na tela a reprodução de uma leitura.”

[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Todos nós pensamos e já emitimos alguma opinião sobre as relações entre as duas mídias, literatura e cinema, quando tratamos de adaptações. Todos nós – pelo menos os da minha geração – fomos babando à estreia de O Senhor dos Anéis: A sociedade do anel em 2001, apenas para elogiar e falar o quanto aquelas cenas estavam de acordo com o que nós mesmos imaginávamos – o que, pensando bem, é um louvor à repetição: para que a necessidade de ir ao cinema comprovar o que já visualizamos mentalmente? Ou, na pior das hipóteses, criticar o filme por ele nos contrariar?[/vc_column_text][vc_column_text]Todos nós já vomitamos aquela frase “mas o livro é muito melhor”. Mas mesmo assim sentimos um tipo de satisfação pouco explicável em ver na tela a reprodução de uma leitura – e a-ma-mos fazer esse tipo de crítica de fidelidade.[/vc_column_text][vc_column_text]

Muitos de nós conhecem obras literárias exclusivamente através de suas adaptações cinemáticas, como pode ser o caso de O Carteiro e o Poeta, de Antonio Skármeta – “ah, mas esse não é do meu tempo!” Bom, nem é do meu. Pensemos em outro exemplo que também não é do nosso tempo: a Laranja Mecânica.

[/vc_column_text][vc_column_text]A Laranja é o ponto central deste texto, já que vejo uma tensão espetacular entre um ótimo texto literário e uma ótima adaptação cinematográfica. Algo há de interessante aí, já que, a partir do momento em que você leu Laranja Mecânica, sua mente evocou Kubrick: roupinha branca, bengala, chapeuzinho e aquele olho pintado. Sabemos da discordância havida entre Anthony Burgess – voilá, o autor do romance – e a visão de Kubrick.[/vc_column_text][vc_column_text]*o leitor atento diz: ah, mas houve discordância também entre Kubrick e Stephen King acerca do Iluminado. Justo, caro leitor, mas ignoremos o texto chulé de King, infinitamente melhorado pelo cineasta, e voltemos ao debate.[/vc_column_text][vc_column_text]O problema que quero debater aqui é o de haver uma sobreposição entre uma obra e outra, pois o cinema, inevitavelmente, leva vantagem na nossa memória visual, muito mais facilmente impressa nos nossos cerebrozinhos, do que um texto complexo como o de Burgess, ainda mais quando essa adaptação cinematográfica se torna um ícone fundamental da cultura pop do século XX, ao lado de Darth Vader e Mickey. – Alex, o trombadinha sociopata, acabou de ser comparado ao Mickey. – Bom, isso foi também um problema para Burgess, que admitiu estar disposto a repudiar a sua própria obra, pois ela havia servido de pretexto a um filme que glorificava o sexo e a violência. (o que é citado por Francisco Gutiérrez Sanín em seu artigo La naranja todavía tiene jugo, publicado na revista colombiana El Malpensante. Siga o link aqui).[/vc_column_text][vc_column_text]Burgess teve o capítulo final de seu romance rejeitado tanto por editores quanto, por extensão, por Kubrick. – Quer saber mais do caso? Leia esse artigo citado aí em cima. Não há cura, por pior que seja. Isso é o que lembramos sobre a moral da obra, muito por causa do desfecho cinemático. Bom, é capaz que você tenha visto o filme apenas pelas tetas e pela porrada. Isso acontece no cinema, somos atraídos por essa pornografia-testosterona-porradeira. No romance de Burgess, eu acho difícil que isso seja um atrativo – a não ser que você mesmo seja um caso a ser analisado.[/vc_column_text][vc_column_text]Não lembramos quem escreveu Um estranho no ninho, mas vemos neste exato momento a cara feia do Jack Nicholson. Não há como ler Androides sonham… de K. Dick e não ver Rick Deckard com a cara de pastel do Han Solo, também conhecido como Harrison Ford.[/vc_column_text][vc_column_text]Pois bem, não há como ver Alex sem ser Malcolm McDowell, aquele ícone popíssimo vestindo o figurino desenvolvido por Milena Canonero em 1971. Harry Potter também perdeu a cara. Frodo é sempre aquele chorão do Elijah Wood. Já me disseram: o filme acabou com todo o universo que eu imaginei para a leitura. Não é terrível? Eu acho.[/vc_column_text][vc_column_text]O cinema age de modo vampiresco com a literatura. Há aí uma sedução insidiosa: tomamos o seu significado, resumimos e simplificamos ao grande público, botamos uma cara vendável e tchan. Ei, autor da coluna: pode-se pensar em livros derivados de séries ou filmes? Sim, como, por exemplo – qual o exemplo mais próximo que temos agora? Ah, Game Of Thrones, todo o mundo inteiro vai correndo ler aquele catatau escrito pelo não-sei-o-que-lá Martin. A relação vampiresca permanece.[/vc_column_text][vc_column_text]Eu não disse aqui o quanto julgo boa a literatura de Anthony Burgess em Laranja Mecânica. Com certeza, em termos linguísticos e narrativos, foi um romance que me impressionou tanto quanto 1984 ou Macunaíma. Acho, em meu íntimo revoltado, uma pena que se pense muito mais em Kubrick quando se pense na Laranja – ou naquela seleção de futebol holandesa –, quando o grande mérito está, para mim, no texto.[/vc_column_text][vc_column_text]Você, leitor atento, poderá achar que eu estou mandando aqui uma outra versão de “ah, mas o livro é melhor”. Não, acho que as duas se equivalem em qualidade e alcançam sentidos únicos para o leitor/espectador, o que não é o caso em geral. Mas acho, sim, que seja uma pena a nossa memória ser tão visual. – mas e o Iluminado? Nesse caso, veja apenas o ótimo filme e salve várias horas de sua vida.[/vc_column_text][vc_column_text]Ben Jones, ilustrador inglês que nos cedeu uma entrevista para a issue #16 (leia aqui) e que ilustra o início deste artigo, resume um pouco essa batalha entre ler e visualizar o texto após o nascimento do Ícone Pop:[/vc_column_text][vc_column_text]

 “Quando pediram para eu ilustrar a Laranja Mecânica para The Folio Society, me veio, após um sentimento inicial de alegria, uma grande apreensão com a ideia de criar ilustrações para um romance que já possui um visual icônico – brilhantemente capturado no filme de Stanley Kubrick em 1971. Para me forçar a parar de pensar no filme, que eu não via desde os meus 17 anos na TV de madrugada, eu me proibi de vê-lo de novo. Em vez disso decidi me focar a estar mais ligado na visão original de Burgess. Após ler o livro, estudei as entrevistas filmadas e escritas do autor onde ele falava do texto, e então comecei a criar um sentido visual do mundo que está dentro do livro. E decidi também me focar nessa língua única que ele criou – Nadsat.”

[/vc_column_text][vc_column_text]O que você, leitor, afinal, espera ver em uma adaptação de um texto já conhecido?[/vc_column_text][vc_column_text]Achar significados? Dar rosto a personagens? Analisar e meter o pau mais tarde? Colecionar bonecos e camisetas e videogames baseados no filme?[/vc_column_text][vc_column_text]Por que não seria a adaptação ideal, portanto, uma que discorde do seu original de uma maneira quase essencial? Pensemos nisso, e no que queremos no final das contas.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

Vinicius F. Barth
Doutor em Estudos Literários pela UFPR. Tradutor das Argonáuticas de Apolônio de Rodes. Escritor e ilustrador. Autor do livro de contos 'Razões do agir de um bicho humano', (Confraria do Vento, 2015) e do livro de poemas e ilustrações '92 Receitas Para o Mesmo Molho Vinagrete' (Contravento Editorial, 2019). Ilustrador de Pripyat (Contravento Editorial, 2019). Estudante de saxofone.

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